CRÍTICA FILME - HEREGE: Romeu ontem, demônio hoje
Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos fez modernos ao cantar a pedra "Até Deus tem um inferno: é o seu amor pelos homens". Se seu "Assim Falou Zaratustra" (1883) exagerou ou não no catastrofismo, o fato é: a malversação do uso da fé - e do Santo Nome - gerou demônios.
O Sr. Reed de "Herege" ("Heretic") é um deles. A dor que ele impinge a suas vítimas vai além dos tormentos físicos. Seu poder é gerar descrença: no Altíssimo, na redenção divina, no altruísmo. É pela saliva que o contágio de sua moléstia moral se propaga, fazendo dele um monstro, dos mais assustadores (e criativos) que o cinema do assombro conheceu em 2024, ao gravitar por jazidas auríferas ("Longlegs") e precipícios ("Terrifier 3"). Artesão da retórica, pautado por um senso particular de teologia, Reed redefine a persona pautada a charme construída por Hugh John Mungo Grant dos anos 1980 para cá.
Sucessivas reprises de "Um Lugar Chamado Notting Hill" (1999) na TV fizeram de seu sorriso um porto seguro para plateias carentes por Romeus em busca de Julietas contemporâneas (entre elas, Julia Roberts, Drew Barrymore, Sarah Jessica Parker e Sandra Bullock). Essa mesma risada agora ganha contornos diabólicos.
Dublado no Brasil por Marco Antonio Costa, que suou para dar conta da entonação do oceano de diálogos do palavroso "Herege", Grant fechou o século XX no posto de galã de comédias românticas. "Quatro Casamentos e Um Funeral" (1994), que lhe rendeu o Globo de Ouro, deu a ele esse posto. Sucessos sucessivos como "Nove Meses" (1995), "Razão e Sensibilidade" (Urso de Ouro de 1996), "Simplesmente Amor" (2003) e "Letra e Música" (2007) lapidaram o perfil "namoradinho ideal" que sua carreira - coroada com um troféu César honorário em 2006 - assumiu.
Pouco se fala, entretanto, da excelência que o astro londrino de 64 anos alcançou, na juventude, sob a direção de James Ivory, nos hoje esquecidos "Maurice" (1987) e "Vestígios do Dia" (1994), títulos essenciais à fleuma do Reino Unido nas telas. Nessa mesma época, ajudou a combater a intolerância ao levar milhões de espectadores às lágrimas no telefilme "Nossos Filhos" (1991), de John Erman. Além de Ivory, Grant colaborou com uma leva de vozes autorais do naipe de Roman Polanski ("Lua de Fel"), Ken Russell ("A Maldição da Serpente"), Woody Allen ("Trapaceiros"), Susanne Bier ("The Undoing", série da Max) e Stephen Frears, que o dirigiu em dois de seus desempenhos mais aclamados: o filme "Florence: Quem É Essa Mulher?" (2016) e a minissérie "A Very English Scandal", que lhe deu uma indicação ao Emmy.
Com o avanço das lutas feministas, Grant foi obrigado se reinventar sua faceta sentimentalista e descontruir a masculinidade, o que fez com brilhantismo em "Um Grande Garoto" (2002), a partir da literatura de Nick Hornby. Soube criar um tipo sexista intragável (mas, irresistível) na franquia "Bridget Jones" (2001-2004). Foi hábil ainda em travar parceria com Guy Ritchie, em "Magnatas do Crime" (2020) e "Esquema de Risco: Operação Fortune" (2023).
Em 2023, a cultura pop soube abraça-lo ainda pelas vias da fantasia, como o vilão Forge, do malfadado "Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes", e como Oompa Loompa do êxito popular "Wonka". Não bastasse tudo isso, ele ainda volta às telonas este ano no papel do vigarista Phoenix Buchanan em "Paddington: Uma Aventura na Floresta", retomando o salafrário que encarnou em 2017, no longa anterior do ursinho britânico.
É esse Hugh Grant multifacetado, imune a fórmulas, que aflora em "Herege", sob a direção de Scott Beck e Bryan Woods. Na franjas do horror psicológico, numa linhagem que vem de "Repulsa ao Sexo" (1965), esse thriller iniciou seu percurso comercial nas telas do Festival de Toronto. É uma narrativa de timbre filosófico que dá medo, muito, só que causa calafrio mais pela troca de ideias, nas reflexões explosivas, do que pelo jump scare (o susto). Seus realizadores são roteiristas íntimos das dinâmicas do medo, com títulos como "65" (2023) e a saga "Um Lugar Silencioso" (2018-2024) no currículo de scripts. Filmaram antes o febril "A Casa do Terror", de 2020. Demonstram firmeza na condução do elenco e, graças ao carisma de Grant, fazem do Sr. Reed um ferrabrás aterrorizante.
Na trama, repleta de viradas, duas jovens missionárias devotadas à pregação (vividas por Chloe East e Sophie Thatcher) acabam presas na casa de Reed (Grant, na flor da atuação), após tocarem sua campainha com o intuito de levar até ele a Palavra do Senhor. Reed parece ser apenas um senhorzinho de subúrbio, aposentado, a viver diante do tabuleiro, comendo torta. A aparência de bom sujeito muda no momento em que revela ter uma tranca tecnológica incapaz de ser aberta por vias normais em seu lar. Pena que as duas pegadoras só percebam isso tarde demais. Na arena armada por ele, as garotas são forçadas a participar de um jogo perturbador que desafia sua crença na bondade humana e põe em xeque sua perseverança.
É um suspense regado a digressões sobre a fragilidade das convicções nossas de todo dia, num debate sobre empatia e perdão.
A direção de fotografia de Chungh-hoon Chung tem no chiaroscuro seu trunfo e aposta numa antítese recorrente de luz e sombras para ampliar a sensação claustrofóbica do ambiente no qual a plateia se embrenha. A montagem eletrizante de Justin Li administra com habilidade o argumento palavroso que tem em mãos, numa utilização sábia da trilha sonora de Chris Bacon para elevar a tensão. O show de Grant em cena assegura o espetáculo.