Assim na tela como no Céu

Celebração da amizade, carregado de alusões a Spielberg, 'Cartas Para Deus' leva Fernando Ceylão, grife de excelência no teatro e na TV, a se firmar como cineasta

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Fernando Ceylão com o elenco de crianças de 'Cartas para Deus'

Mesmo com os pés fincados na Terra, numa trama sobre superação, o set de "Cartas Para Deus" transpirava "E.T.: O Extraterrestre" (1982) por todos os lados, não só dia em que recebeu a visita do Correio da Manhã, numa filmagem na Lagoa, mas em todas as suas rodagens. Mesmo sem seres do espaço em seu enredo, a saga de um menino de 8 anos, Theo (Davi Malizia), em guerra contra um câncer, abria espaços para evocar um dos maiores sucessos de bilheteria de Hollywood - sobretudo a sequência do toque de dedos entre um garotinho e um alienígena - e outros recordistas de público que formaram o imaginário cinéfilo do realizador, ator e dramaturgo carioca Fernando Ceylão.

"Sou o Spielberg do Maracanã", brincava, enquanto explicava o interesse em fazer a versão made in Brazil de "Letters to God", filme americano de 2010. "Tem um clima John Williams por aqui", dizia, citando o compositor e maestro consagrado por trilha como a de "Superman" (1978), de Richard Donner, outra inspiração de Ceylão. "Esse foi um cara singular, que fez 'A Profecia', fez 'Máquina Mortífera', fez 'Goonies'. Eu gosto muito de easter eggs (um jargão nerd para 'referências') e plantei umas alusões ao 'Goonies' nesta história sobre um menino que se corresponde com Deus por meio de cartas. Não é uma trama religiosa, mas sim um drama humano, humanista, onde posso explorar um lado lúdico na premissa de uma criança cujo amigo imaginário é Deus. Tem um pouco do 'Além da Eternidade' do Spielberg nisso".

Uma das situações cruciais do roteiro de "Cartas Para Deus", adaptado pro Mariana Alvim, é ambientada em um jogo de futebol em que estão a mãe de Theo, Malu (papel de Regiane Alves), e o carteiro Julio (interpretado por Pedro Caetano). A rotina dele, como entregador de correspondência, muda por completo quando tem a missão de dar cabo de missivas que estão endereçadas ao Todo-Poderoso. Ao lê-las, Julio recupera sua vontade de superar desafios.

"Sem se associar a nenhum credo, este projeto vem da minha vontade de falar de fé e conta com um artista com o talento do Ceylão para abordar uma força motriz que é intangível, e passa pela esperança", diz a produtora do longa, Patricia Chamon (de "Desapega"), que conta com a Paramount Pictures como coprodutora e distribuição da Imagem Filmes. "O elemento da carta nos traz algo de nostálgico, que resgata o valor da escrita, sobretudo entre as crianças, nestes tempos em que tudo é digital. Filmamos na Zona Norte, em Ramos, na Usina, na Tijuca, buscando falar de valores afetivos".

Respeitado no teatro por peças do naipe de "Como É Cruel Viver Assim" (filmada por Julia Rezende em 2017) e autor de numerosos roteiros, Ceylão se firma como cineasta à força de longas-metragens que rodou este ano. Antes de "Cartas Para Deus", fez "Resta Um", um thriller com tintas distópicas na qual o governo impõe à população brasileira a missão de participar de debates online. Quem perde na troca de ideias toma um tiro. Um professor (vivido por Caco Ciocler), que precisa proteger sua companheira adoentada (Maria Ribeiro), usa de retórica para sobreviver nessas plenárias, mas expõe um lado monstruoso a cada enquete. O titã Daniel Filho integra o elenco.

"É o 'Coringa' do Caco Ciocler, a versão 'Taxi Driver' dele", explica Ceylão que, hoje aos 49 anos, ensaia uma guinada radical em sua carreira, muito marcada pelo humor, com participações no programa "Mais Você", de Ana Maria Braga, e espetáculos teatrais cômicos. "Quando eu era menino, na Tijuca, ia para a escola vestido de Indiana Jones e, uma hora, a direção chamou minha mãe e sugeriu que ela me levasse ao psicólogo, pela minha identificação com o herói arqueólogo vivido pelo Harrison Ford. Naquela época eu pensei: 'Como eu não posso ser o Indiana Jones, eu vou ser o cara que está por trás dele, e por trás de 'E.T.', e do 'Tubarão'. Vou ser o Spielberg". Quer dizer, eu entendi que deveria ser diretor de cinema, ou seja, fazer algo que, pelo menos em parte do trabalho, possa me permitir viver longe da realidade, cercado pela imaginação".

Preparando uma volta aos palcos (como autor) com um monólogo escrito para Susana Vieira, Ceylão explica que o convite de Chamon para dirigir "Cartas Para Deus" abriu um veio para expandir suas ambições por trás das câmeras.

"Sempre achei que só viria a dirigir filmes que eu concebesse e escrevesse, de modo autoral pleno. De repente, depois do 'Resta Um', eu me peguei dirigindo um projeto que não nasceu de mim, e foi uma experiência rica, pois provou que eu posso, também, ser um diretor de encomenda, coisa que o próprio Spielberg e outros contemporâneos dele, de prestígio, já fizeram. A princípio, quando a Patricia Chamon trouxe a ideia, eu me questionei se seria capaz de contar uma história sobre o poder de acreditar, que envolve o simbolismo de Deus. Não tenho preconceito com narrativas sobre religião, mas não sei se saberia fazê-las. Logo, eu me dei conta de que não era um filme religioso, mas sim uma narrativa sobre afeto, amizade. Aí, eu embarquei", diz Ceylão. "Existe uma divisão muito perigosa no cinema de crer que filme popular não pode ser bem cuidado, defendendo que só projetos ditos autorais tem bastante acabamento estético. 'Cartas Para Deus' é um projeto de essência popular com acabamento cuidadoso, com uma cara, com a minha essência. É um filme daquele garoto de 9 anos, que eu fui, e se deu conta de que seu futuro era fazer filmes".

A poesia que circunda "Cartas Para Deus" é que esse tal garoto carrega consigo toda a excelência que Ceylão provou ter como um multiartista, em múltiplas funções.