Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Valeria Sarmiento: 'Nossas ilusões se dissiparam com a queda de Allende'

'Realismo Socialista': imagens raras na grade da MUBI | Foto: Divulgação

Liberdade é uma palavra que desperta vulcões na memória da cineasta e montadora chilena Valeria Sarmiento, não apenas pelas lembranças do golpe de estado que lançou sua pátria num jugo ditatorial, em 1973, mas por recordações das estratégias buscadas por seu companheiro, o diretor Raúl Ruiz (1941-2011), para reagir à derrocada da democracia.

Às vésperas da queda do governo de Salvador Allende (1908-1973), ele registrou o cotidiano de sua pátria em tempo de mudança, num sonho de equidade social bruscamente interrompido pela ação de generais. O material rodado por Ruiz e finalizado (só cinco décadas depois) por Valeria com o título "El Realismo Socialista" poderá ser visto em solo brasileiro, via streaming, a partir do dia 9, na MUBI, que realiza uma retrospectiva do casal. Na mesma data, o www.mubi.com disponibiliza "A Telenovela Errante" (2017) e "O Tango Do Viúvo E Seu Espelho Deformador" (2020).

Nascida em Valparaizo, há 76 anos, a realizadora casou-se com Ruiz em 1969 e foi sua parceira na direção e na montagem. Trabalhou com ele em cults como "Klimt" (2006) e "Genealogias de um Crime" (1997). Depois de ter rodado "Un Sueño Como De Colores", em 1972, Valeria acompanhou o cineasta quando ele colhia depoimentos para o que viria a ser "El Realismo Socialista". Na ocasião, a reação das forças armadas do Chile contra Allende forçou o casal a zarpar para a França. No Velho Mundo, ele rodou clássicos como "O Tempo Redescoberto" (1999) e ela rodou "Amélia Lopes O'Neill" (com Laura del Sol e Franco Nero), que foi indicado ao Urso de Ouro de 1991. Concorreu ainda ao Leão de Ouro de Veneza, em 2012, com "As Linhas de Wellington".

Num papo com o Correio da Manhã no Festival de San Sebasián, Valeria nos conta o quão abertas estão as veias de nuestros Hermanos em Santiago e arredores.

Como foi a experiência de revisitar o Chile de 1973?

Valeria Sarmiento: Uma jornalista classificou o nosso filme como "a história de uma derrota". Entendo a frase, pois nossas ilusões se dissiparam ali. Foi deprimente reencontrar aquele Chile de 1973, num material deteriorado que engloba até o bairro onde vivi.

O Chile de hoje lhe traz mais esperanças do que aquele?

Testemunhar a direita se fortalecer por lá me faz sentir diante de um espelho histórico alarmante.

Qual é o sonho que Raúl e a senhora registraram nos anos 1970?

Filmávamos inspirados por um projeto de mudança capaz de transformar a realidade de nosso país. Esse projeto não se concretizou. Há um testemunho desse impasse histórico em "El Realismo Socialista" e há a triste constatação de que nossos contemporâneos estão desparecendo. A minha geração está sumindo.

O que o cinema europeu lhe ofereceu de mais sólido em todo o tempo que vem filmando no Velho Mundo desde que rodou "La Dueña de Casa", na França, em 1975?

Estabilidade. Algo que eu não teria naquele Chile pós Allende.