Roberto Gervitz conta que cuidou com carinho de pai da digitalização de "Feliz Ano Velho", que inaugura nesta quinta-feira (5) a sala 9 do multiplex Cinesystem do Shopping Frei Caneca, em São Paulo - um espaço 100% dedicada a títulos nacionais. Estreia também em outras salas da rede, no Shopping Bourbon (SP), em Botafogo (no Rio) e no Casa Park (em Brasília). Na entrevista a seguir, Gervitz, que dirigiu também o primoroso "Jogo Subterrâneo" (2005), fala ao Correio da Manhã de uma narrativa a ser revista à luz da saudade.
O que mais te encantou na prosa do "Feliz Ano Velho" à época de sua publicação e de que maneira o filme dialogou com anseios da sua geração?
Roberto Gervitz: Sua coloquialidade inaugurava uma nova literatura autobiográfica brasileira escrita por jovens. Nessa tendência também se destaca "Morangos Mofados", de Caio Fernando de Abreu. O livro me encantou por uma narrativa cheia de vida e de associações livres, pelas passagens ágeis entre o passado e o presente, evocando experiências e um universo comum entre os jovens de classe média de nossa geração. No presente do Marcelo tudo estava em aberto em meio à dura luta por ganhar autonomia com a sua nova condição. A franqueza e o resgate erótico das "transadas", como se falava na época, bateu com força em nossa geração. Mesmo com experiências distintas as pessoas se reconheciam naquela linguagem jovem. O livro transpirava uma forte pulsão de vida, uma fome de viver, como um resgate necessário para o Marcelo que atravessava um momento de morte e renascimento. O que me marcou mesmo e me levou a fazer o filme, foi a dimensão metafórica da imobilidade e do mergulho que redireciona a vida do Marcelo, não como uma vítima mas como uma pessoa responsável por suas escolhas. Eu quis refletir sobre a imobilidade como fruto do medo de viver em meio a um mundo que ficava para trás e outro que mal se anunciava e ameaçava.
O que o êxito popular do filme "Ainda Estou Aqui" - e, com ele o novo gás para a prosa de Marcelo - te desperta em relação a seu histórico com aquela literatura confessional?
"Ainda Estou Aqui" é um livro esplêndido que resultou em um filme esplêndido... e emocionante... de um cineasta maduro e talentoso, a quem admiro. Quanto ao livro do Marcelo, eu o considero o seu melhor livro até aqui. Creio que Marcelo tem um grande poder de observação, mas ele vai muito além da descrição. Ele transforma o que observou em linguagem. Afirmar que um livro é cinematográfico é quase sempre um engodo. "Feliz Ano Velho" me deu muito trabalho para roteirizar e estruturar, ainda mais por minha inexperiência, e quando li "Ainda Estou Aqui", eu me perguntei quais seriam os caminhos para escrever um roteiro a partir daqueles materiais que o livro oferecia. Todos seriam muito trabalhosos e desafiadores. Seu roteiristas mostraram enorme talento, fizeram as melhores escolhas.
Que Brasil está retratado em "Feliz Ano Velho" e para que Brasil ele falou em sua estreia?
Era um Brasil que saía da ditadura, que tinha vivido as grandes mobilizações estudantis do final dos anos 1970, as grandes greves metalúrgicas, o movimento Diretas Já. Apesar da grave crise econômica, havia uma euforia com a capacidade da sociedade civil lutar pelos seus direitos. Surgiu um partido político formado pela mobilização operária e popular que representava importantes setores que queriam uma sociedade democrática com justiça social. Mas... e sempre tem um mas, o primeiro presidente da dita Nova República era um representante do passado recente da ditadura. Isso era um sinal de algo que estava subjacente à superfície, e se revelou plenamente nos últimos 40 anos. As estruturas repressivas também ainda estão aqui. Na década de 1980, o mundo entra definitivamente no neoliberalismo e assiste à ascensão do yuppismo, ou seja, era uma sociedade onde conviviam fortes tendências culturais, políticas e sociais que caminhavam em sentidos opostos. Eu creio que muita gente se iludiu com um futuro imaginado e desejado. Descobrimos a duras penas que as estruturas para que as coisas não mudem são muito poderosas e seguem intactas.
Quais são seus atuais projetos na direção?
Estou preparando um roteiro de um documentário que vou codirigir com Jorge Bodanzky que ainda só tem um título provisório. Há uma ficção que desejo filmar que mexe com a guerrilha latino-americana e se intitula "Yaguar". Eu adaptei para o cinema "A República das Milícias", do livro de Bruno Paes Manso. Apesar de todos esses projetos, a viabilização de filmes no Brasil nunca esteve tão difícil.