Guias quatro rodas estipulam 69 quilômetros de estrada Paraíba adentro, equivalentes a uma hora de carro, ao delimitarem a distância entre Itabaiana, a terra natal do cineasta Vladimir Carvalho (1935-2024), e a capital daquele estado, sem levar em conta o amor que serve de interseção às duas cidades, expresso na paixão cinéfila de seu povo (e do Brasil todo) pela obra de um diretor que era a prata da casa.
Em outubro, sem pedir licença à nossa saudade, ele nos deixou, aos 89 anos. Na cidade onde vivia há décadas, no coração do DF, ele virou nome de sala de exibição no Cine Brasília, que acolhe hoje a reta final da competição pelo troféu Candango. Em solo paraibano, seu berço, um de seus (melhores) filmes vai inaugurar a maratona cinéfila anual de João Pessoa (PB), o Fest Aruada: esta noite "A Bolandeira" (1968) dá a largada para o evento. Na sequência, tem "Malu", de Pedro Freire.
No sertão da Paraíba, as chamadas "bolandeiras", rústicos engenhos de madeira que fabricam mel e rapadura, operados por tração animal e humana, subsistem, mas se tornam cada vez mais raros, substituídos por equipamentos mais modernos, a motor. Um modo de vida que cercava aquele engenho do passado está fadado a desaparecer. O curta seminal de Vladimir, a ser projetado nesta quinta no Manaíra Shopping, fala sobre essa desaparição. Seu tema, de costume, era a erosão de antigas práticas, o que ele abordava sempre de forma discreta, vide sua abordagem para falências (e resiliências) utópicas em "Giocondo Dias - Ilustre Clandestino" (2019), seu derradeiro longa-metragem. Nesta sexta, às 14h55, tem sessão dele no Canal Brasil.
Filmar no silêncio, sem alarde, era uma marca de Vladimir e, a partir dela, ele teve chances de construir uma das sólidas filmografias do documentário brasileiro desde 1960, quando integrou a equipe de um filme mítico para a criação do cinema moderno no país: "Aruanda". Não por acaso, o festival de sua "pátria" tem o nome que tem.
Pilotada por Linduarte Noronha (1930-2012), a produção - encarada como uma centelha do projeto cinemanovista de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues e cia. - conta a história dos remanescentes de um quilombo em Serra do Talhado, na Paraíba, mostrando o cotidiano dos moradores, jornadas de plantio e feitos de cerâmica "primitiva". Seu roteiro trazia um componente ficcional, com habitantes da região representando seus antepassados, partindo da encenação para promover uma investigação sobre as contradições sociais de populações excluídas pelo Estado.
"No Liceu paraibano, fui aluno de Linduarte, que era mais velho do que eu uns cinco anos", contou Vladimir ao Correio da Manhã, numa de suas últimas entrevistas. "Voltamos a nos encontrar quando eu já escrevia crítica de filmes nos jornais. Quando ele ganhou um prêmio internacional de fotorreportagem, resolveu adaptar um outro texto seu sobre um quilombo antigo. Ali, ele chamou a mim e a João Ramiro Mello para escrevermos juntos o roteiro. Lembro-me da viagem de reconhecimento do tema, subindo a Serra do Talhado por uma estradinha carroçável recém-aberta, sob um sol de 40 graus. Ali eu me tornei cineasta".
Quem quiser conhecer a obra de Vladimir pode recorrer ao streaming. A Amazon Prime incluiu "Cícero Dias, o Compadre de Picasso" (com o qual o diretor concorreu no É Tudo Verdade em 2016) em sua grade, pincelando memórias das artes plásticas nacionais. Já a plataforma Looke trouxe para sua programação "Conterrâneos Velhos de Guerra" (1991), "Evangelho Segundo Teotônio" (1984), "Homem de Areia" (1981) e o obrigatório "País de São Saruê" (1971), um dos mais poéticos registros documentais da América Latino, silenciado pela Censura do governo militar. No Curta!On, encontra-se um imperdível episódio da série "Nós, Documentaristas", feita pela cineasta Susanna Lira, com base em depoimentos dele. Outro longa sobre Carvalho, "Quando A Coisa Vira Outra" (2022), de Marcio de Andrade, pode ser visto no Claro TV .