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Melodia da inquietude germânica

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Apesar de Alemanha ter escolhido um filme iraniano ("The Seed Of The Sacred Fig", do qual foi coprodutora) como seu representante oficial ao Oscar 2025, ela atravessou 2024 emplacando sua prata da casa nos grandes festivais internacionais e em circuito, como "Stella. One Life", "Cuckoo", "De Hilde, Com Amor" e "A Arte do Caos". A diversidade de gêneros, da comédia ao thriller, foi grande, atestando a atual saúde criativa da indústria audiovisual germânica.

De tudo o que se viu de lá, de janeiro até agora, o título que melhor traduz o atual estado de coisas da sociedade alemã é "Dying - A Última Sinfonia" ("Sterben"), que estreia no Brasil neste fim de semana cercado de elogios. Ligações e mensagens de whatsapp contínuas mobilizam o celular de seu realizador, Matthias Glasner, desde fevereiro, quando seu estonteante longa-metragem foi exibido na disputa pelo Urso de Ouro de 2024, da qual saiu com o prêmio de Melhor Roteiro.

A procura por ele - até de colegas cineastas com quem nunca tivera contato antes - aumentou depois que ele foi agraciado com a láurea do Sindicato de Exibidores de Filmes de Arte da Alemanha e o Prêmio de Júri Popular dos leitores do "Berliner Morgenpost". Aos 59 anos, o diretor egresso de Hamburgo passou a ser encarado como "A" promessa de uma indústria consagrada, sobretudo nos anos 1970, pelas vozes autorais de Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Margarethe von Trotta, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog. Dos anos 2000 para cá, Maren Ade ("Toni Erdmann"), Christian Petzold ("Undine") e Fatih Akin ("O Bar Luva Dourada") se juntaram a esses medalhões, que, via Áustria, tiveram Michael Haneke (de "A Fita Branca") e Ulrich Seidl ("Paradise: Faith") como expoentes.

Desde a consagração em Berlim, ele anda reticente com a badalação. "Tenho visto excelentes filmes alemães dirigidos por mulheres, mas não vejo tudo o que lançamos. Não tenho amigos cineastas e não sou muito ligado ao que meus conterrâneos filmam, mas não é uma questão de desrespeito. Primeiro de tudo: eu tenho filhos. Meu tempo é deles. Depois, ando bem mais instigado por experiências fílmicas de outros territórios, como é o caso do cinema japonês. Um outro exemplo é 'Parasita', um filme da Coreia do Sul com muitas camadas", disse Glasner ao Correio da Manhã, após a projeção das três horas e três minutos de sua comédia dramática.

Em "Dying", "Sterben" é o nome de uma peça sinfônica que o maestro Tom Lunies (Lars Eidinger, em devastadora atuação) está ensaiando a partir de uma composição feita por seu melhor amigo, músico Bernard (Robert Gwisdek), acometido de profunda depressão. Sua vida anda maluca, não apenas com seus amores (entre eles sua namorada cheia de desejo, e bem mais jovem), mas também com a ex-mulher, que acaba de ter um filho. Todos acreditam que o regente não é o pai da criança, mas ele a registra apesar de tudo. O chamado da paternidade acontece num momento de loucura em sua família. Sua mãe, a septuagenária Lissy (Corinna Harfouch), parece ficar feliz quando vê seu marido, Gerd (Hans-Uwe Bauer), definhar no hospital, num processo de demência. A sensação de liberdade que ela tem ao "se livrar" dele termina quando ela passa a ser acometida, subitamente, por uma série de problemas: diabetes, insuficiência renal, perda de visão. Um diagnóstico de câncer vem coroar seus infortúnios. Nesse momento de calvário de Lissy, sua filha, Ellen (Lilith Stangenberg), engata um caso com um dentista casado com quem partilha a paixão pelo álcool e pela embriaguez. Nessa ciranda nefasta, essas pessoas terão de reaprender a se amar.

"Eu fiz um filme sobre a solidão, com base na rotina de pessoas que se sentem desconfortáveis com várias questões pessoais. Eu mesmo sinto desconforto com o processo do cinema, menos com o set em si. Meu empenho aqui era quebrar com as ditas convenções do cinema alemão, de narrativas frias e afetivamente distanciadas, e fazer um filme empático, acolhedor, capaz de mostrar que a antessala de espera pela morte pode ter situações divertidas", disse o cineasta, que fala com bom humor dos critérios da escalação de Eidinger. "Eu não o conhecia antes, mas gostei do modo com que ele se expressa em entrevistas, do que fala. Fora isso, quando a gente se conheceu, percebi que ele não é daquelas pessoas que cultuam um otimismo tolo. Não se levanta comemorando a vida. Assim como eu, ele fala: 'Oh! Mais um dia pela frente'. Filmamos coisas muito malucas, a partir dessa conexão. Algumas, mais barra pesada, não entraram na versão exibida na Berlinale, mas vão para a versão para a TV, em forma de minissérie, com uma hora a mais, que eu estou preparando".

Conhecido por filmes ("O Desejo Liberado") e séries como "Das Boot", Glasner começou sua carreira em 1987, em busca de tramas que escapem do moralismo.

"Hoje ninguém mais parece ter coragem de fazer filmes sobre adultos, para adultos", disse o cineasta. "Eu liguei duas câmeras, deixei minhas atrizes e meus atores de 'Dying' criarem com liberdade e, às vezes, a verdade aparecia num take único. Tive ainda a alegria de poder deixar cinco minutos de música clássica, sem cortes, na tela".