Todo 9 de dezembro é um signo de saudade na literatura brasileira, pela efeméride da partida de Clarice Lispector (1920-1977), que morreu 47 anos atrás, um dia antes de completar 57 primaveras. Ela assopraria 104 velinhas amanhã, 10/12, mas seu aniversário vai ganhar festa de todo jeito, visto que a obra da autora de "Perto do Coração Selvagem" (1943), celebrada no Brasil e no exterior, segue viva, eterna e inspiradora, vide o elogio dado pela atriz australiana Cate Blanchett, ao citar seus textos numa entrevista, no Festival de San Sebastián, na Espanha, em setembro.
Às 20h desta terça-feira, o Teatro Adolfo Bloch, na Glória, promove uma leitura dramatizada em honra da autora de "Água Viva" (1973), batizada de "A Hora de Clarice", com Beth Goulart e o Duo Bevilacqua Assumpção. A dramaturgia foi escrita por Melina Dalboni com base no livro "Clarice Lispector Entrevista", editado pela Rocco, que atualmente publica tudo da escritora. O evento, com produção de Nelson Fonseca, é capitaneado pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho, maior diretor de teledramaturgia do país, responsável por marcos da TV ("O Rei do Gado") e da tela grande ("Lavoura Arcaica").
Desde janeiro, a partir do Festival de Roterdã, ele vem circulando o mundo com uma versão singularíssima de "A Paixão Segundo GH", publicado por Clarice em 1964. O realizador e sua estrela, Maria Fernanda Cândido, ganharam prêmios recentemente na Itália, no Festival de Siena. Antes, foram laureados nessas mesmas categorias no Bafici, na Argentina.
Nas raias da perfeição, o mergulho de Luiz Fernando em "A Paixão Segundo GH" gera um dos movimentos mais politizados de seu repertório autoral ao atomizar a ideia de burguesia não por uma refutação dela mas por um confronto frontal com seu vazio mais abissal. Aromas de Luchino Visconti e seu "O Leopardo" (1963) perfumam a lavação de roupa social proposta pelo diretor, de modo a devassar a calmaria daqueles que têm muito - na aparência - mas se posicionam com incerteza diante da essência... a essência do humano.
Para representar vários degraus de uma sociedade de classes sociais afastadas pelo jugo do capitalismo, Luiz Fernando dirige Maria Fernanda num jogral corporal inusitado para as formas de se atuar no país, a partir do qual ela constrói distintas personas, sendo muitas mulheres numa só, como um coral das forças femininas. O resultado: um espetáculo fílmico indomável.
Devoradas por leitores de vários cantos do mundo, em traduções da língua portuguesa, as páginas de Clarice movimentam o audiovisual em outras latitudes. Uma delas é a Paraíba, onde se passa o Fest Aruanda, que tem entre seus concorrentes "Lispectorante", da cineasta Renata Pinheiro. Uma das mais potentes diretoras de arte deste país, respeitada como realizadora por longas como "Carro Rei" (premiado em Gramado em 2021), a artista pernambucana brinca de Aki Kaurismäki no Recife, numa narrativa de um humor tão cartunístico quanto o do mestre finlandês. Marcélia Cartaxo é a protagonista, a artista plástica Glória, que volta à sua cidade natal e passa por locais onde La Lispector viveu. Lá, prova do prazer e da força analgésica da imaginação.
No primeiro semestre deste ano, a cineasta Nicole Algranti, sobrinha-neta de Clarice, respeitada por suas experiências documentais, assinou a direção artística de uma produção com elenco estelar, atualmente em filmagem, que dá vida a diferentes textos de Clarice. Eunice Gutman filma "Mal-Estar De Um Anjo"; Taciana Oliveira encampa "Amor"; Maria Luiza Aboim adapta "Feliz Aniversário"; e Bárbara Kahane se ocupa de "Preciosidade". A própria Nicole dirige um segmento, baseado em "A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais".
Há 21 anos, Nicole concorreu no Festival de Brasília com um curta-metragem baseado na obra de sua tia-avó: "O Ovo", com Louise Cardoso, Carla Camurati e Chico Diaz, com narração feita por Maria Bethânia. Ela fez ainda com Louise "Clarice Lispector - De Corpo Inteiro", que pode ser visto em seu canal do YouTube: Tabocas Filmes.
Laureado com uma menção honrosa e o prêmio de Melhor atriz no já citado Bafici, "O Livro dos Prazeres", de Marcela Lordy (diretora de "Aluga-se"), é outra das recentes incursões da classe cinematográfica ao planeta Lispector. Pode ser visto hoje no Globoplay. Nele, a diretora promove uma sofisticada operação de "deslizamento" em seu corpo a corpo com a prosa homônima de Clarice. É um curso de roteiro de 1h40, na batida de um intensivão de escrita.
Chega a ser uma heresia aplicar o "redutor" conceito de "adaptação" para definir o quão sofisticado é o diálogo estabelecido entre o script de Josefina Trotta e da própria Lordy e o livro "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", lançado por Clarice em 1969. Em ambos, o romance e o filme, conhecemos Loreley - professora chamada entre seus pares só de Lóri - pelo vácuo em seu peito, que a leva a se desgarrar de qualquer possível relação amorosa duradoura. Nós emotivos assustam a personagem esculpida com delicadeza por Simone Spoladore. O segundo personagem de peso da trama, o filósofo Ulisses, é confiado a Javier Drolas, astro de "Medianeras" (2011).
Quem assina a Amazon Prime tem a chance de poder se deliciar com "Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo", no qual Taciana Oliveira investiga a autora de "A Maçã no Escuro" sob os mais variados prismas. É uma abordagem documental de timbres poéticos.
Vale lembrar que a versão da diretora Suzana Amaral (1932-2020) para "A Hora da Estrela", lançado em 1985 e aclamado no exterior (sobretudo pelo desempenho de Marcélia Cartaxo), foi recentemente remasterizada pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro.