Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Bênção a Eduardo Coutinho

'Santo Forte' dá voz a diferentes moradores do Rio numa investigação do documentarista Eduardo Coutinho sobre a prática da fé | Foto: Divulgação

Homilia documental em louvor à dimensão cinemática da palavra, "Santo Forte" (1999) ganha um novo espaço em circuito, nesta quarta-feira, no Estação NET Botafogo, onde será exibido às 15h30, em tela grande, seguido de um debate sobre as estratégias investigativas e narrativas que fizeram de Eduardo Coutinho (1933-2014) um ourives da não ficção. O evento é promovido pelo cineclube Cine Cidadania. Lá pelas 17h, um time pluralíssimo analisa o longa-metragem, responsável por repaginar o papel do documentário na Retomada, temo referente à reconstrução do parque audiovisual brasileiro após o fechamento da distribuidora e sobretudo fomentadora Embrafilme, cujo sucateamento gerou uma queda na produção nacional.

O bate-papo vai reunir a jornalista Nilza Valéria, integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito; o historiador e escritor Luiz Antônio Simas; o cartunista Claudius Ceccon, colaborador do Centro de Criação de Imagem Popular. A fala deles vai cartografar os eixos de análise que Coutinho estabeleceu sobre a prática da fé, numa abordagem inusitada para as formas de se documentar do fim da década de 1990, usando a fala como objeto fílmico.

Era 5 de outubro de 1997 quando a equipe de Coutinho, da qual Cristiana Grumbach e Patricia Guimarães eram assistentes de direção, entra na favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea. Era uma época na qual, o povo carioca acabava de assistir à missa celebrada pelo Papa no Aterro do Flamengo. Em dezembro, a equipe voltou à comunidade a fim de descobrir como seus moradores vivem a experiência religiosa. Católicos, candomblecistas, umbandistas ou evangélicos, todos têm em comum a crença na comunicação direta com o mundo sobrenatural por meio da intervenção, em seu cotidiano, de santos, orixás, guias ou do Espírito Santo de que a Bíblia fala. Coutinho abre o microfone para figuras diferentes e colhe delas formas de crer e, mais do que isso, formas de sobreviver no Rio.

Ganhou a Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pelo zelo que teve com o ecumenismo. Abocanhou ainda o Prêmio Especial do Júri de Gramado e o troféu Candango de Melhor Filme no Festival de Brasília. Tantas láureas, somadas ao êxito de bilheteria, fizeram nascer uma verdadeira Igreja Coutinho no Rio de Janeiro (sobretudo na Zona Sul) e em SP (entre USPianos), cultuado a obra do documentarista paulistano que teria feito 91 anos no último 11 de maio não fosse o crime passional que ceifou sua vida, num ataque de seu filho esquizofrênico, em 2 de fevereiro de 2014. Seu legado, contudo, segue firme, sobretudo nas plataformas de streaming. Dá para ver "Santo Forte" também no Globoplay.

Por lá, é possível ver ainda a obra-prima do diretor, que comemora 40 anos: "Cabra Marcado Para Morrer" (1984). Laureado na Berlinale de com o Iterfilm Award e o Prêmio da Crítica, a produção - exibida ainda em Cannes, em projeção especial, em 2012 - é considerada o tratado definitivo de nosso cinema sobre a luta pela reforma agrária. Obviamente, o longa documental que dividiu águas na forma de a América Latina representar a vida íntima cotidiana nas telas, "Edfício Master" (2002), integra o pacote da plataforma da Globo e também o Itaú Cultural Play. É uma presença obrigatória não apenas por seu sucesso de público e crítica mas por servir como porta de entrada ideal para quem não conhece o estratagema de escuta armado pelo realizador. Há 22 anos, esse longa deu seu realizador o troféu Kikito de melhor .doc em Gramado. Cinco anos depois, o diretor voltaria lá para buscar uma honraria pelo conjunto de sua obra - o Kikito de Cristal - e exibir "Jogo de Cena" (2007).

Chamar Coutinho de "o papa do documentário brasileiro" virou lugar-comum na crítica cinematográfica brasileira. Tal clichê requer uma discussão. Cineasta algum recebe "os votos" de sumo pontífice de um formato cinematográfico se não tiver desenvolvido uma gramática bastante personalista em sua seara narrativa. A força gramatical de um longa da grife Coutinho vem da engenharia do encontro que ele poliu, filme a filme. Ainda no Globoplay estão "Peões" (2004) e "O Fim e O Princípio" (2005).