Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Payal Kapadia: 'Na Índia, nem o silêncio é quieto'

'Tudo Que Imaginamos Como Luz', de Payal Kapadia, é o o maior adversário de 'Ainda Estou Aqui' na briga pelo Globo de Ouro | Foto: Sideshow/ Janus Films

 

Ao receber o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes, em maio, Payal Kapadia, diretora de 38 anos, egressa de Mumbai, na Índia, quebrou muitos tabus de sua pátria, sobretudo os que interditam a equidade de gêneros no mercado de trabalho (até na arte) e insistem em estorvar o empoderamento feminino.

"Quero acreditar que teremos mais mulheres realizando funções técnicas importantes no cinema daqui para frente, pois já existe uma mudança acontecendo", desabafou a cineasta, na França, ao ser laureada por "Tudo O Que Imaginamos Como Luz" ("All We Imagine As Light"), recém-chegado ao Brasil no embalo de múltiplas vitórias no exterior.

"Trabalhei cinco anos nesse roteiro que fala de três vozes femininas, de gerações diferentes, e ele ia mudando conforme eu amadurecia", disse Payal ao Correio da Manhã na Croisette.

Falado em três línguas (o malaiala, o hindi e o marata), o drama rodado por ela enche o peito das plateias de esperança sem incorrer nas caricaturas de feel good movie.

Foi o primeiro longa-metragem de CEP indiano a concorrer à Palma de Ouro depois de um hiato de 30 anos. Nascida na região de Rourkela, há 67 anos, Mira Nair, colega e compatriota de Payal, agraciada com o Leão de Ouro de Veneza por "Um Casamento à Indiana", 23 anos atrás, foi a realizadora daquela nação que chegou mais longe em reconhecimento internacional, driblando sexismos históricos.

Payal, que conquistou 13 troféus de prestígio com sua saga sobre companheirismo, pode ir além de Mira, sobretudo com a indicação ao Globo de Ouro de Melhor Direção que recebeu na segunda-feira. Nessa premiação, considerada uma prévia do Oscar, "Tudo Que..." disputa ainda na categoria de Melhor Filme De Língua Não Inglesa, encarando o brasileiro "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles. Desponta dia a dia como o maior adversário de Waltinho.

Fala-se muito de dois outros concorrentes. Um deles é o musical francês "Emilia Pérez", de Jacques Audiard, recordista de indicações ao Globo, brigando em onze frentes. O outro é o thriller iraniano "The Seed Of The Sacred Fig", de Mohammad Rasoulof. Dos três, é Payal quem mais tem arrebatado as associações de crítica dos EUA.

Entrou até no pódio de Melhores de 2024 da revista "Cahiers du Cinéma", considerada a Bíblia da cinefilia desde 1951, à força de sua excelência visual. Pode até vir a ser indicada a algum Oscar, mas não ao de Melhor Filme Internacional, uma vez que a Federação de Cinema da Índia (FFI), um organismo não governamental de produtores, distribuidores e proprietários de estúdios formado em 1951, preteriu "Tudo Que Imaginamos Como Luz" em prol de "Laapataa Ladies", de Kiran Rao, como candidato oficial daquela pátria à estatueta de Hollywood.

Segundo Ravi Kottarakara, o atual presidente do FFI, seu júri, ao avaliar o trabalho de Payal na tela, parecia "estar vendo um filme europeu que se passa na Índia e não um filme indiano que se passa na Índia".

Realizadora dos curtas-metragens "Afternoon Clouds" (2017) e "And What Is the Summer Saying" (2018), Payal criou conscientemente caminhos que a diferem do audiovisual de sua terra natal, cujo maior artesão autoral foi Satyajit Ray (1921-1992), ganhador do Urso de Ouro de Berlim (com "Trovão Distante") e do Leão dourado veneziano (com "O Invencível").

"Queria paletas distintas do que se faz no meu país, sobretudo Bollywood (seara mainstream do audiovisual da Índia, especializada em melodramas e musicais), com a consciência de que cada província indiana tem o seu próprio polo cinematográfico, com regras próprias e, por vezes, com línguas diferentes", respondeu Payal ao Correio em Cannes, ao citar a francesa Claire Denis (diretora de "Com Amor e Fúria" e "Bom Trabalho") entre suas referências. "Na fase do ano relativa às monções, nas chuvas, quando se olha o horizonte, tudo adquire um tom azul, por vezes cinza. Eu quis essa paleta, que depois se abre para o vermelho, num sinal da iluminação que se dá com as personagens. O título do filme sugere a sensação de sombria que nos cerca quando a vida parece sem saída".

Ganhadora do troféu L'Oeil d'Or (a Palma de Documentários de Cannes) por "Uma Noite sem Saber Nada" (2021), Payal idealizou "Tudo Que Imaginamos Como Luz" como se fosse uma operação sinestésica. Na trama, a enfermeira Prabha (Kani Kusruti) recebe um presente inusitado do ex-marido. Nesta mesma época, a colega de quarto dela, Anu (Divya Prabha) começa a namorar e tenta encontrar um lugar onde o novo casal possa ter intimidade em paz. Nesse momento, uma viagem para o litoral vem bem a calhar à rotina delas, que se abre para uma terceira figura, a aposentada Parvaty (Chhaya Kadam).

"A Índia que se tornou mais folclórica no cinema, a de Bollywood, é marcada pela música. Em geral, Mumbai nunca é silenciosa e seus sons nos afeta. Outra operação em que tentei buscar um caminho diferente foi no som, buscando a quietude. Na Índia, nem o silêncio é quieto", disse a diretora. "Espero que com o interesse do mundo pelo filme, a partir de Cannes, as barreiras da língua se quebrem para nosso cinema".