Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Furtadices

Jorge Furtado estreou na direção em 1984 | Foto: Festival de Gramado/Divulgação

Previsto para chegar feito arrasa-quarteirão neste Natal, "O Auto da Compadecida 2" traz entre os colaboradores de seu (divertidíssimo) roteiro um cineasta gaúcho que, há 40 anos, é citado entre as grifes mais finas (e mais infalíveis) da dramaturgia nacional, na telona e na TV: Jorge Furtado. Aos 65 anos, comemorando quatro décadas cravadas de carreira em 2024, ele acaba de abrilhantar o Festival do Rio com um longa-metragem novo, ainda inédito em circuito: "Virginia E Adelaide", codirigido por Yasmin Thainá. Antes, no primeiro semestre, ele assinou o script de uma ousada releitura da prosa de Guimarães Rosa: "Grande Sertão". Dirigido por Guel Arraes, essa releitura em forma de distopia de um marco da literatura em língua portuguesa hoje se encontra no menu do Globoplay, que funciona como uma espécie de retrospectiva digital da trajetória do realizador, com direito ao curta-metragem que fez sua fama mundo afora depois de conquistar o Urso de Prata da Berlinale de 1990: "Ilha das Flores". Continua na página seguinte

 

Joias em formato de pílula

Diretor arranca atuação estonteante de Francisco Cuoco em Real Beleza, hoje no Globoplay | Foto: Globoplay/Divulgação

Entre a primeira metade da década de 1980 e meados da de 1990, Furtado povoou o imaginário audiovisual do Brasil com joias em formato pílula, a começar por "Temporal" (1984), rodado em duo com José Pedro Goulart, e hoje em cartaz no site Porta Curtas. Estão lá ainda "O Dia Em Que Dorival Encarou a Guarda" (1986), "Barbosa" (rodado em parceria com Ana Luiza Azevedo, em 1988) e "O Sanduíche" (2000).

Numa outra latitude da streaminguesfera, o Curta!On, onde se encontra um documentário de Hermes Leal sobre ele, Furtado senta praça com um exercício pelas veredas da não ficção que está completando uma década: "O Mercado de Notícias" (2014). É uma investigação sobre as práticas do jornalismo no Brasil e as armadilhas retóricas nas quais repórteres por vezes caem. Há como ver esse .doc também na Amazon Prime, que resgatou um dos maiores sucessos do diretor: "O Homem Que Copiava" (2003), com Lázaro Ramos vivendo um operador de xerox.

Lazinho voltou a ser dirigido pelo cineasta em duas outras comédias: "Meu Tio Matou Um Cara" (2004) e "Saneamento Básico" (2007). Ambas estão no Globoplay, assim como o primeiro longa de Furtado: "Houve Uma Vez Dois Verões" (2002). A mais saborosa iguaria de sua obra na tela grande também se encontra no streaming da Globo: "Real Beleza". Lançada em 2015, no Cine Ceará, a produção segue uma linha narrativa próxima ao cinema europeu dos anos 1970, como os filmes do francês Eric Rohmer ("Pauline na Praia") ou do italiano Ettore Scola ("Nós Que Nos Amávamos Tanto"). A referência europeia fez Furtado dizer "entrei na tradição do drama burguês", ao falar sobre este enredo centrado na busca de um fotógrafo por uma beldade. A trama marcou a primeira parceria, em tela grande, do casal Vladimir Brichta e Adriana Esteves, reciclando o talento de um dos maiores galãs da TV no país: Francisco Cuoco.

Rascante, "Real Beleza" é centrado na luta de um especialista em fotografia de moda para levar uma adolescente do interior do Rio Grande do Sul para virar modelo numa ponte São Paulo x Nova York. Furtado escreveu o filme pensando em Brichta para o papel principal, João. No filme, ele viaja a terras sulistas atrás de uma aspirante a Gisele Bündchen. No trajeto, conhece Maria (Vitória Strada), que se encaixa com perfeição em suas ambições. O desafio é convencer os parentes da jovem de 16 anos a deixa-la viajar. O pai, o professor aposentado Pedro (Cuoco, numa atuação comovente), é reticente e levou a menina para uma viagem por alguns dias. Enquanto espera por eles, João tenta um contato com a mãe da jovem, Anita (Adriana), e os dois acabam tendo mais do que apenas uma conversa, abrindo a deixa para um triângulo afetivo com cenas sensuais e menções à poesia. É uma aula de realização.

Com exibições em telona previstas para 2025, o supracitado "Virginia E Adelaide" leva Furtado e Yasmin Thainá ao encontro de duas mulheres extraordinárias: a brasileira Virgínia Bicudo e a alemã Adelaide Koch. Virgínia, ícone das lutas antirracistas, foi a primeira psicanalista brasileira. Adelaide, psicanalista judia, veio para o Brasil em fuga do regime nazista na Alemanha. Elas se conheceram em novembro de 1937, em São Paulo, no momento em que Getúlio Vargas decreta o Estado Novo. O convívio entre elas inspira um tratado sobre sororidade.