Pátria de Mohsen Makhmalbaf, Asghar Farhadi, Abbas Kiarostami (1940-2016) e Jafar Panahi, o Irã mobilizou festivais de peso da indústria cinematográfica este ano (Berlim, Cannes, Locarno e San Sebastián) com aulas de resistência à opressão - "A Semente do Fruto Sagrado" e "Meu Bolo Favorito" - que sofreram repreendas violentas de seu governo. As equipes de ambas as produções foram criminalizadas sob a acusação de ferir a "dignidade" de sua nação, ao falar da paranoia imposta por dogmas religiosos, legislações restritivas e sexismo. A estreia dos dois no Brasil está marcada para 9 de janeiro. São narrativas de resistência ao veto contra a liberdade com denúncias à brutalidade estatal contra as mulheres.
"Sempre que o patriarcado perde, a agressividade aumenta", disse o cineasta Mohammad Rasoulof, em entrevista organizada pela Golden Globe Foundation, que incluiu "A Semente do Fruto Sagrado" entre seus concorrentes à láurea de Melhor Filme de Língua Não Inglesa, a ser entregue em 5 de janeiro.
A produção, cujo título no exterior é "The Seed of the Sacred Fig", é encarada como um dos mais ferozes rivais de Walter Salles e seu "Ainda Estou Aqui" na briga pelo Globo de Ouro. O misto de drama e thriller de Rasoulof já soma 19 prêmios desde sua primeira projeção pública, em Cannes, em maio. Esse estudo sobre a metástase do fundamentalismo saiu de lá com o Prêmio Especial do Júri, o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio da Crítica. É um dos longas mais cotados para competir pelo Oscar de 2025, mas pode ser indicado sob uma perspectiva inusitada. Ao escolher anualmente um filme a ser submetido a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, almejando uma vaga na disputa estadunidense, as instituições culturais iranianas precisam passar por um crivo (leia-se "censura") de seus governantes, que reprova (em geral) as tramas avessas às imposturas políticas cometidas por seus gestores. O representante deles da vez se chama "In the Arms of the Tree", de Babak Khajehpasha, que teve pequeníssima repercussão fora de suas fronteiras.
"Eu busquei criar um retrato que fratura as verdades impostas como regra, falando do quanto as mulheres resistem com bravura", diz Rasoulof, laureado com o Urso de Ouro da Berlinale de 2020 por "Não Há Mal Algum". "A manutenção de certas figuras no Poder no meu país vem sendo assegurada pela promessa de um lugar no Reino dos Céus".
O que fez "A Semente..." ser esnobado para a função estratégica de representar o Irã na Academia é a pressão de órgão governamentais iranianos contra o cineasta. Ele tem viajado pelo mundo sempre cercado de tensão, pois se encontra sob condenação estatal em sua terra natal, vivendo refugiado na Alemanha. Diante da boa recepção que seu longa vem tendo, os alemães (que coproduziram seu roteiro) não tiveram dúvida e escolheram-no para representar o audiovisual germânico na corrida aos Oscars. Em sua trama, um juiz entra em paranoia ao se sentir perseguido e começa a se voltar de forma violenta contra suas filhas e sua mulher.
"Venho de uma cultura submetida à tirania, pois o Estado Islâmico é capaz de tudo", disse Rasoulof em Cannes. "Por que meu governo tem tanto medo das histórias que contamos?".
Aos 52 anos, o realizador, egresso de Xiraz, precisou fugir de sua casa, e partir para o Velho Mundo, para conseguir expressar sua voz autoral pelo planisfério cinéfilo. Seu passaporte foi confiscado pelas autoridades do Irã, que o considera uma ameaça à integridade nacional.
"Dei instruções à equipe para que terminasse o filme caso eu fosse preso. Quando a sentença de que eu seria detido saiu, fui para casa e me despedi das minhas plantas, depois dei um jeito de sair", explicou o diretor, que por já ter sido trancafiado antes conhecia meios não tão legais de escapar, por rotas alternativas que o levaram à Europa. "Este é um filme sobre doutrinação, sobre o que acontece quando você deixa alguém, ou alguma ideologia tomar conta de sua mente. Não tenho medo da intimidação".
Igualmente patrulhado, "Meu Bolo Favorito" ("My Favourite Cake") brilhou na corrida pelo Urso de Ouro de 2024 e deixou a Berlinale com o Prêmio da Crítica e o do Júri Ecumênico. Há um triste contexto político por trás dessa trama outonal envolvendo dois septuagenários: uma viúva e um taxista. Seus diretores, a dupla Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha (de "O Perdão"), foi proibida de viajar para a capital alemã por um veto das autoridades de seu país, o Irã. Eles são acusados de desafiar os códigos morais iranianos em relação ao uso de hijab, uma espécie de touca (com aspecto de véu), que cobre a cabeça feminina de forma bem justa. A interdição da presença de Maryam e Behtash foi recebida pela direção do Festival de Berlim como um atentado à arte.
"Decidimos ultrapassar as restrições legais e pintar um retrato real das mulheres iranianas", disseram os realizadores numa carta lida diante da imprensa pela atriz e jornalista Lily Farhadpour, que protagoniza "Meu Bolo Favorito" ao lado de Esmaeel Mehrabi.
Há um ano e quatro meses, um outro gesto combativo da classe cinematográfica do Irã ganhou o mundo, para o dissabor de seus regentes: "Zona Crítica" ("Mantagheye Bohrani"). Inédita por aqui, a produção ganhou o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 2023. Transgressor nas telas e fora delas, tanto por assumir um traficante como um herói humanista quanto por seu modelo de filmagem avesso a autorizações e burocracias, o frenético longa de Ali Ahmadzadeh é a crônica do dia a dia de um vendedor de drogas de bom coração, que entrega narcóticos a pessoas vulnerabilizadas pela vida ou pela aspereza governamental. Ahmadzadeh teve que rodar a trama em sigilo, nas ruas de Teerã. Essa é uma realidade comum a muitos diretores daquele território, como o já citado Jafar Panahi ("O Balão Branco"), que já ficou em prisão domiciliar mais de uma vez por denunciar arbitrariedades. Artistas assim sofrem, mas resistem.