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Evangelho segundo Malick

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Sempre se espera um filme sobre a chegada de Jesus da temporada de Natal, com reprises na TV de clássicos que cercam o Evangelho, como "Ben-Hur" (1959), de William Wyller. O mais esperado ensaio sobre o Messias do povo cristão está no forno há quase cinco anos, chama-se "The Way Of The Wind" e tem Terrence Frederick Malick como seu realizador. Aborda as pregações de Jesus da crucificação à Páscoa. O húngaro Géza Röhrig é quem vive o Salvador. As filmagens tiveram locações na Turquia. Estima-se que sua estreia ocorra na Berlinalne, entre 13 e 23 de fevereiro, uma vez que seu diretor saiu de lá com o Urso de Ouro há 25 anos, conquistado pela excelência de "Além da Linha Vermelha".

Apoia-se no talento de Mark Rylance como Satã. Conta com o belga Matthias Schoenaerts no papel do fundador da Igreja, o apóstolo Pedro. Joseph Fiennes, Ben Kingsley e Franz Rogowsky estão no elenco. A fotografia é de Jörg Widmer, que foi operador de câmera em vários longas do cineasta, inclusive seu título mais recente, "Uma Vida Oculta", ganhador do Prêmio do Júri Ecumênico de Cannes, em 2019.

Em novembro, Malick chegou aos 81 anos mudado, mais aberto aos holofotes, de flerte com o pop. Há 13 anos, quando conquistou a Palma de Ouro de Cannes com "A Árvore da Vida", ele nem foi ao palco do Palais des Festivals da Croisette para receber seu troféu. No máximo, jantou com os diretores artísticos do evento, pois viveu umas quatro décadas com aversão a fotografias, badalação, redes sociais. Sua realidade agora é outra. Ele até lançou na web um comercial... uma campanha publicitária... para a grife Louis Vuitton. O vídeo "Towards a Dream in USA", é mais uma experiência narrativa com ares documentais filosóficos de cinema road movie do que um reclame institucional padrão. Mesmo assim, é uma virada em sua aclamada carreira, iniciada em 1969.

É possível conferir "A Árvore da Vida" hoje na grade da MUBI. Cultuado, o filme arrecadou US$ 58 milhões pelo mundo afora, em paralelo à indicação do realizador (um ermitão avesso a fotos e aparições públicas) ao Oscar de melhor direção de 2012. Existe uma segunda versão, director's cut, ainda maior do que a metragem vista em solo cannoise, em 2011, com 2h20, exibida no Festival de Veneza, em 2018, com 188 minutos. Mas a revisão que os exibidores do Velho Mundo propõem é a partir do que se viu e do que se aplaudiu em Cannes, quando Robert De Niro foi o presidente do júri do evento.

Foi com "A Árvore da Vida" que Jessica Chastain despontou para os holofotes de Hollywood, no papel de uma mãe protetora que tenta resguardar um de seus filhos, Jack (Hunter McCracken, quando jovem; Sean Penn, quando adulto) da ferocidade silenciosa de seu pai exigente, o Sr. O'Brien, vivido por Pitt. Amparado no arrojo da fotografia do mexicano Emmanuel Lubezki, Malick professa na tela uma homilia espiritualista: a tese de que a Natureza está acima da vontade dos homens. Em Malick, a Natureza é a onipotência em estado puro, só que esta é tratada a partir de contornos messiânicos, num reflexo de sua formação pelo transcendentalismo, expresso em ensaístas como Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau. O ideal transcendental desses autores escorre por Malick, lido à luz e ao ethos do Romantismo, seja pela evasão (no tempo, no espaço) seja pelo tratamento quase divino dado ao Amor.

Analista da dicotomia entre inocência e hipocrisia, Malick sempre arquiteta tomadas belíssimas da natureza, como os campos de trigo de "Cinzas no Paraíso", de 1978, que hoje pode ser visto na Amazon Prime. Por lá, chega-se ainda à sua expedição à América dos anos 1600 em "O Novo Mundo", de 2005. Outra marca do cineasta: a cada filme que roda, uma multidão de astros do mais alto quilate se oferece a trabalhar para ele a cachês módicos. Na estreia de "A Árvore da Vida", Sean Penn chegou a dizer que não havia entendido bem o roteiro, mas que valia encará-lo para estar como um mestre daquele porte ao seu lado. Mesmo nos trabalhos em que foi recebido com frieza ou desdém, vide "Amor Pleno" (2012) e "Cavaleiro de Copas" (2015), Malick continuou atraindo estrelas e continuou sendo respeitado como um artesão da imagem. Até o mais ácido cronista do cinema americano, o jornalista Peter Biskind, autor de "Easy Riders, Raging Bulls - Como a Geração Sexo-Drogas-Rock'n'Roll Salvou Hollywood", foi capaz de render elogios ao diretor em uma entrevista de 2011. "Depois de ter desafiado as convenções de roteiro dos EUA, Malick desapareceu, para se dedicar a dar aulas de Filosofia, o que muitos interpretaram como uma recusa de se submeter aos vícios de Hollywood. Certo ou errado, Malick virou um marco de integridade artística".

Durante anos a fio, o cineasta filmou com hiatos enormes, mas, a descoberta das câmeras digitais alimentou seu gosto por voltar aos sets ou de remexer em imagens de arquivo. Agora, a Louis Vuitton também pode facilitar seus projetos para o futuro.