Por Rodrigo Fonseca Especial para o Correio da Manhã
Choveu ingresso vendido na conta do Brasil no abre-alas de 2024, ali entre janeiro e março, no avançar de multidões que prestigiaram "Minha Irmã e Eu", "Nosso Lar 2- Os Mensageiros", "Mamonas Assassinas" e "Os Farofeiros 2". Depois desse bonde, as receitas encolheram, até um novo sopro aparecer, no fim do segundo semestre com especulações de Oscar em volta daquele que pode, de longe (e de perto), ser qualificado com "O" filme brasileiro do ano:
AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles: Estima-se que a adaptação do romance homônimo do escritor Marcelo Rubens Paiva feche o ano com 3 milhões de ingressos vendidos (tá perto dessa cifra), carregando uma aura de blockbuster à cerimônia do Globo de Ouro, no dia 5, em Beverly Hills, onde concorrerá às estatuetas de Melhor Filme de Língua Não Inglesa e Melhor Atriz, graças à atuação divinal de Fernanda Torres. Desde setembro, no Festival de Veneza, de onde o longa saiu com o prêmio de Melhor Roteiro, ela arrebata plateias como a advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018). Durante a ditadura, no início dos anos 1970, Eunice teve o marido, o engenheiro Rubens Paiva (papel de um coruscante Selton Mello), levado para depor, mas ele nunca regressou. Dali para diante, ela se empenha em dissipar névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos "subversivos", numa trajetória heroica. A montagem espartana de Affonso Gonçalves narra essa luta em saltos no tempo, com direito a uma entrada de Fernanda Montenegro (como Eunice em fase madura) numa sequência de doer na alma.
Entre o êxito lá do primeiro trimestre e a chegada de "Ainda Estou Aqui", fizemos bonito nas telas estrangeiras, com prêmio de Melhor Direção na mostra Encontros da Berlinale para a paulista Juliana Rojas e seu "Cidade; Campo". Aqui dentro, o rol de autorias a desfilar em salas foi amplo. Confira a seguir o que mais se viu de imperdível de janeiro para cá:
Nosso ranking
A PAIXÃO SEGUNDO GH, de Luiz Fernando Carvalho: Num "bloco do eu sozinho", radical, mas afetivo, Maria Fernanda Cândido brinda o cinema com seu talento e carisma numa atuação solo em que reage, com uma suavidade de gestos, ao texto de Clarice Lispector (1920-1977), publicado em 1964. A trama esbanja existencialismo: depois de despedir a empregada, G.H. inicia uma faxina no quarto de serviço e vê uma barata. Enojada do inseto, ela decide esmagá-lo. Nesse gesto, diante da massa pastosa e branca da barata morta, ela embarca num processo de desmontagem de sua condição humana.
FERNANDA YOUNG, FOGE-ME AO CONTROLE, de Susanna Lira: Ganhador do Prêmio da Crítica no Festival de Paraty, este ensaio documental passou pelo É Tudo Verdade com um turbilhão de colagens, seja de desenhos, fotos, trechos de performances, entrevistas e seriados de TV. Essa mistura traduz o espírito cri-cri da romancista, poeta e apresentadora morta em 2019, aos 49 anos, em decorrência de uma crise de asma. FY dizia que "reclamação é uma forma de otimismo". Com engenho, Susanna fala uma autora que fazia do verbo "irritar" seu aríete.
MOTEL DESTINO, de Karim Aïnouz: Único concorrente latino à Palma de Ouro de Cannes, o thriller erótico do diretor de "Madame Satã" (2002) devolveu ao país a coragem de filmar o sexo com gozo, sem o cinto de castidade da correção política e sem a camisinha da sociologia, comprovando o quanto Fábio Assunção é um ator de talento GG. Ele esbanja vigor ao interpretar Elias, o dono da hospedaria Destino, cuja gerente (e amante), vivida pela inspirada Nataly Rocha, vai ter um caso com um assassino fugitivo (Iago Xavier).
O AUTO DA COMPADECIDA 2, de Flávia Lacerda e Guel Arraes: João Grilo e Chicó voltaram, 25 anos depois do fenômeno pop da TV, depois transformado em filme, para explorar a mitologia (de perfume marxista) de Taperoá, terra imaginada pelo dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014) como um microcosmo do Brasil. A fotografia de Gustavo Hadba, que hoje vive uma fase de apogeu criativo em seu trânsito pela luz, redefine as convenções audiovisuais do Nordeste. Agora, a pacata rotina de Chicó (um Selton Mello à moda Oscarito) é sacudida pelo retorno do muito sumido João Grilo (Matheus Nachtergaele, num assombro de atuação). O herói pícaro retorna em meio a uma campanha política envolvendo um coronel (Humberto Martins) e um radialista (Eduardo Sterblitch), que reflete a polarização do país.
STELLA DO PATROCÍNIO E A GÊNESE DA POESIA, de Milena Manfredini: Numa mistura de videoarte, .doc e ficção, a diretora relembra os feitos da poeta que foi detida em instituição psiquiátrica (Colônia Juliano Moreira) sob a alegação de esquizofrenia e lá desenvolveu o "falatório" como arte.
A FILHA DO PALHAÇO, de Pedro Diógenes: Um exercício felliniano do cinema cearense menos preocupado com o lirismo e mais atento aos quebra-molas nas estradas (da vida) por onde os circos passam - que sejam os circos de um artista só. No enredo, Joana (Lis Sutter), adolescente de 14 anos, vai passar uma semana com o pai, Renato (Demick Lopes, brilhante em cena). Ele é um humorista que apresenta shows em churrascarias, bares e casas noturnas de Fortaleza, interpretando Silvanelly, mistura de cantora e clown, com Almodóvar nas veias. Apesar de mal se conhecerem, pai e filha terão que conviver, o que transforma a vida dos dois.
MALLANDRO, O ERRADO QUE DEU CERTO, de Marco Antonio de Carvalho: Ser capaz de fazer Glu-Glu e Yeah-Yeah com Sérgio Mallandro não é faro-fafá, não, mas esta produção de Glaucia Camargos - a melhor comédia do ano, disparada - conseguiu, graças ao bom roteiro de Sylvio Gonçalves, Ulisses Mattos e Pedro Antonio, com participação de seu protagonista. O príncipe de "Lua de Cristal" (1990) desfila sua picardia numa hilária desconstrução de sua persona, em que perde a habilidade de dizer bordões e precisa se reinventar, com Xuxa de fada madrinha.
MALU, de Pedro Freire: O ganhador do troféu Redentor de Melhor Filme do Festival do Rio (em empate com "Baby") tem sido um ímã de lágrimas (e de aplausos) desde sua estreia mundial, em Sundance. No afiado roteiro, Malu (Yara de Novaes), uma atriz de passado glorioso, vive presa num caos sentimental. A relação nada leve com sua mãe conservadora, Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha), e sua filha adulta, Joana (Carol Duarte), torna sua crise ainda mais aguda. Um amigo, Tibira (Átila Bee), que mora com ela, tenta se equilibrar em meio ao caos que se instaura naquela casa repleta de mágoas. A fotografia (belíssima) é de Mauro Pinheiro Jr.
O DIA QUE TE CONHECI, de André Novais Oliveira: Distante da estética de invenção que deu fama a seu diretor em "Quintal", essa RomCom (comédia romântica) mineira devassa clichês do gênero ao incorporar fracassos (profissionais, existenciais) e comprimidos em sua dramaturgia com ecos de Hong Sangsoo. Num misto de humor, angústia e romantismo, André narra um pedacinho da vida atribulada de Zeca (Renato Novaes), um bibliotecário que luta para manter o trabalho e a paz, numa jornada que será coroada por um encontro com Luísa (Grace Passô). O filme ganhou o Prêmio do Júri do Festival do Rio de 2023.
ESTRANHO CAMINHO, de Guto Parente: Um dos responsáveis pelo marco do cinema de invenção dos anos 2000 "Estrada Para Ythaca", o diretor cearense teve a carreira catapultada ao Olimpo da consagração mundial ao conquistar quatro prêmios no Festival de Tribeca, em Nova York, com esta história fantasmagórica sobre paternidade. Nela, uma conjugação afetiva começa a ser esboçada entre um cineasta, David (Lucas Limeira, numa composição doce), e o pai que há tempo não via, Geraldo (Carlos Francisco), cuja estranheza encobre mistérios.