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Desejos, estranhezas e autorias

Por Rodrigo Fonseca Especial para o Correio da Manhã

Nenhum estúdio ganhou tanto dinheiro com a venda de ingressos em 2024 quanto a Disney, que ocupou o primeiro, o segundo e o quarto lugar do pódio das maiores arrecadações do ano, encabeçando a lista com a receita de US$ 1,6 bilhão de "Divertida Mente 2". Depois vieram "Deadpool & Wolverine" (com US$ 1,3 bilhão) e "Moana 2", até agora dom US$ 792 milhões. Ou seja, Mickey Mouse peitou o fantasma do esvaziamento das salas de projeção num período de 12 meses em que grandes vozes autorais (Woody Allen, Hayao Miyazaki, Wim Wenders, Emily Atef, Tim Burton, Marco Bellocchio) mobilizaram o circuito brasileiro. Foi um siciliano já cinquentão (53) quem nos deu o título mais provocativo de janeiro até aqui. Confira a seguir o que mais se viu de imperdível de janeiro para cá:

O filme do ano:

QUEER, de Luca Guadagnino (Itália/ EUA): É a mais ousada investigação do diretor de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017) sobre o desejo e seus impasses. Concorreu ao Leão de Ouro e está na disputa pelo Globo de Ouro de Melhor Ator, à força do devastador desempenho de Daniel Craig, o último 007. No roteiro escrito pelo dramaturgo Justin Kuritzkes, fotografado pelo tailandês Sayombhu Mukdeeprom nos estúdios Cinecittà (Roma), o imigrante William Lee (Craig, impecável) passa as noites a se emburacar no álcool, em flertes com rapazes. Vive só, cercado por outros americanos expatriados, igualmente carentes. Ao conhecer o jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), Lee acredita ser capaz de estabelecer uma ligação íntima. Acaba por levar o sujeito numa jornada ao Equador, regada a plantas alucinógenas, em sequências com o diretor argentino Lisandro Alonso ("Jauja") no elenco, ao lado da diva britânica Lesley Manville.

Nosso ranking

TESTAMENTO ("Testament"), de Denys Arcand (Canadá): Quase 21 anos depois do cult "As Invasões Bárbaras", o historiador e realizador canadense enfrenta patrulhas ideológicas da contemporaneidade numa ácida cartografia da cultura woke. Com a ironia que lhe é peculiar, ele narra os dilemas do arquivista Jean-Michel Bouchard (Remy Girard, em estonteante em cena) diante de uma campanha pública para a destruição de um quadro na instituição onde vive. A pintura traz uma representação do encontro entre indígenas e colonizadores, o que irritou ativistas. Outro alvo deles é a dramaturgia do alemão Bertolt Brecht.

A SUBSTÂNCIA ("The Substance"), de Coralie Fargeat (Reino Unido/França): Uma receita de US$ 77 milhões o prêmio de Melhor Roteiro de Cannes cinco indicações ao Globo de Ouro consagraram esta produção de US$ 17,5 milhões que fez Demi Moore voltar aos holofotes. Ela interpreta uma estrela decadente, Elisabeth, que passa por um experimento, consumindo uma fórmula que faz seu corpo rejuvenescer e dar lugar a uma nova persona, Sue (encarnada por Margaret Qualley), num prazo determinado. A ambição pelo estrelato vai desrespeitar esse tal prazo, gerando consequências monstruosas (literalmente) num body horror que expõe o culto à celebridade e a vaidade excessiva. A condução da trama é eletrizante.

O QUARTO AO LADO ("The Room Next Door"), de Pedro Almodóvar (Espanha/EUA): Ao se arriscar nas veredas da língua inglesa, o artesão manchego do melodrama arrebatou o Leão de Ouro de Veneza abrindo um debate sobre eutanásia, numa reflexão sobre dignidade no outono da vida. Julianne Moore (em estado de graça) o ajuda nessa enquete ao emprestar seu talento à figura de Ingrid, escritora que reencontra uma de suas melhores amigas, Martha (Tilda Swinton), em estado terminal de um câncer, almejando o próprio fim. Ficar perto dela em sua busca por uma morte digna é um gesto de amor. Ao falar da morte, Pedro expõe moralismos.

ANATOMIA DE UMA QUEDA ("Anatomie d'Une Chute"), de Justine Triet (França): Ganhador da Palma de Ouro de 2023 e do Oscar de Melhor Roteiro Original deste ano, esta mistura de drama e thriller de tribunal extrai uma vigorosa atuação da alemã Sandra Hüller e alimenta um debate sobre sexismo na cultura contemporânea. Uma escritora e tradutora é acusada da morte de seu marido, que quebrou a cabeça ao cair do último andar de sua casa. Uma batalha judicial é encenada em torno de sua morte, revelando segredos da vida conjugal, fraturada por cobranças. Vendeu 1,9 milhão de ingressos em seu país, assegurando seu lucro.

BEEKEEPER: REDE DE VINGANÇA ("Beekeeper"), de David Ayer (EUA): Este filme de ação raiz, nas raias do gore, com Jason Statham muito bem dublado por Armando Tiraboschi, coroa a estética bruta do realizador de "Esquadrão Suicida" (2016) e "Corações de Ferro" (2014). Nos minutos iniciais, uma idosa (Phylicia Rashad) é roubada num golpe digital aplicado por uma organização que limpa as contas bancárias de pessoas na terceira idade. Para azar desse bando, a vítima tem como seu melhor amigo um Apicultor. Tal título, usado pela figura virtuosa vivida por Statham, refere-se a um ramo secreto do Serviço de Inteligência dos EUA que nem a CIA pode acessar. Um ramo com licença para bater (muito)... e matar.

DAHOMEY, de Mati Diop (Senegal): Laureada em 2019 com o Grande Prêmio do Júri de Cannes de 2019 por "Atlantique" (hoje na Netflix), a atriz e diretora franco-senegalesa ganhou o Urso de Ouro da Berlinale com esta aula de geopolítica. Seu roteiro é estruturado como a cartografia do tráfego de uma série de relíquias beninenses, surrupiadas por colonizadores europeus, de volta ao lar. Uma dessas peças, a estátua chamada de Número 26, é quem narra a rapinagem histórica sofrida por populações da África, como se fosse uma entidade.

LONGLEGS - VÍNCULO MORTAL ("Longlegs"), de Osgood Perkins (EUA): Fenômeno inusitado de bilheteria, este thriller macabro de US$ 10 milhões arrecadou US$ 127 milhões e repaginou a imagem (há muito sucateada) de Nicolas Cage numa dramaturgia com ecos de "O Silêncio dos Inocentes" (1991). Amparado na aeróbica de câmera do fotógrafo Andrés Arochi, com planos quadrangulares, supercloses e muita grande angular, este suspense disseca, camada por camada, as angústias existenciais da agente do FBI Lee Harker (Maika Monroe, impecável) ao investigar uma série de mortes brutais alinhavadas sob símbolos de natureza satânica ligadas a um psicopata exótico (Cage, sublime).

JURADO Nº 2 ("Juror #2"), de Clint Eastwood (EUA): Em cartaz na MAX e na Amazon Prime, este thriller jurídico pode ser o derradeiro trabalho de direção do realizador duplamente oscarizado por "Os Imperdoáveis" (1992) e "Menina de Ouro" (2004), que hoje tem 93 anos. Sua habitual angústia acerca de responsabilidade e consciência pesada repousa aqui numa corte na qual um jornalista alcoolista (Nicholas Hoult) precisa analisar um caso de feminicídio. O dilema: bêbado, ele pode atropelado a vítima e, não, o atual réu.

NÃO ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO ("Nu Astepta Prea Mult De La Sfârsitul Lumii"), de Radu Jude (Romênia): É o novo longa do diretor de "Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" (Urso de Ouro de 2021). Ganhou o Prêmio do Júri em Locarno e entrou no Top Ten da "Cahiers du Cinéma". Sua atriz, Ilinca Manolache, tem um desempenho em estado de graça. Apesar disso tudo, esta joia não teve lugar em circuito, estreando diretamente na MUBI. Jude estuda o sucateamento das relações laborais, centrada no empenho de uma produtora (Ilinca, brilhante) em filmar pessoas que sofreram acidentes de trabalho. Sua abordagem debochada é hilária.

ARMADILHA ("Trap"), de M. Night Shyamalan (EUA): No roteiro mais doido (leia-se "livre") de sua trajetória de (bons) scripts repletos de viradas, o diretor de "O Sexto Sentido" (1999) aplica todas as fórmulas de tensão que aprendeu vendo Hitchcock e potencializa cada uma, com sua aeróbica de enquadramentos inquieta, para narrar o cerco a um psicopata (Josh Hartnett) que, pra manter a fachada de cordeiro, leva a filha ao show de uma estrela pop. Claustrofobia pura.