Chame pelo nome: 'Queer'

O diretor Luca Guadagnino extrai de Daniel Craig uma atuação devastadora, livrando-o do arquétipo de 007, numa incursão pela literatura de William Burroughs, pilar da prosa beatnik

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Daniel Craig concorre ao Globo de Ouro de melhor ator como o expatriado William Lee em 'Queer'

 

Cercado de polêmica desde sua primeira projeção pública, em setembro, no Festival de Veneza, quando abriu uma prerrogativa sobre a sexualidade do agente secreto James Bond, "Queer" é um dos mais ousados (e narrativamente arrojados) concorrentes ao Globo de Ouro de 2025, já confirmado pelo circuito brasileiro a partir desta quinta.

Sua ousadia não se detém ao fato de escalar um ícone de virilidade, o inglês Daniel Craig, o mais recente 007 do cinema, no papel de um homossexual solitário no México dos anos 1950 - e sua atuação é devastadora. O filme ousa é na habilidade de flagrar um moralismo histórico, e não só norte-americano, acerca do desejo e de seu habitual parceiro, o amor.

Luca Gudagnino, realizador siciliano responsável pelo sucesso "Me Chame Pelo Seu Nome" (uma produção do brasileiro Rodrigo Teixeira, de 2017), volta a se debruçar sobre interditos do querer numa produção de 48 milhões de euros, inspirada em livro homônimo do beatnik William S. Burroughs (1914-1997).

Assegurado já pela plataforma digital MUBI, esse drama erótico (e, sim, romântico) entra em circuito neste fim de semana, quando seu diretor comemorou a indicação de outro longa seu, o êxito de bilheteria "Rivais" (hoje na Prime Video), ao Globo dourado de melhor filme.

"A literatura chamada de beat brincou com as palavras e criou um novo cânone, provocativo, o que me impôs o desafio de tentar capturar aquele espírito e me imbuir dele", diz Guadagnino, em resposta do Correio da Manhã em coletiva via Zoom, promovida online pela Golden Globe Foundation pouco antes de Craig ser indicado ao troféu de Melhor Ator da premiação.

Os dois hoje estão na mira da indústria nerd, sob a hipótese de trabalharem juntos na versão para as telas das HQs do Sargento Rock, maior herói da II Guerra nos quadrinhos. Há ainda uma nova adaptação do best-seller "Psicopata Americano", de Beat Easton Ellis (filmado antes em 2000, com Christian Bale), nos planos do realizador de "Um Sonho de Amor" (2009), que leu "Queer" ainda moleque.

"Partimos de um esboço de roteiro que escrevi quando tinha 20 anos", diz o cineasta, que traz uma canção de Caetano Veloso ("Vaster Than Empires") na trilha sonora idealizada por Trent Reznor e Atticus Ross, seus parceiros também em "Rivais", que puseram ainda a banda Nirvana para embalar uma Cidade do México suarenta. "Kurt Cobain e Burroughs ficaram amigos num dado momento. São dois artistas que ficaram congelados no âmbar da cena artística".

No roteiro escrito pelo dramaturgo Justin Kuritzkes, fotografado pelo tailandês Sayombhu Mukdeeprom nos estúdios Cinecittà, em Roma, o imigrante William Lee (Craig) passa as noites a se emburacar no álcool, em flertes com rapazes atrás de sexo. Vive só, cercado por outros americanos expatriados como ele, igualmente carentes. Ao conhecer o jovem Eugene Allerton, um ex-soldado (vivido por Drew Starkey), Lee acredita ser capaz de estabelecer uma ligação íntima com alguém. Acaba levando o sujeito para uma jornada pelo Equador, regada a plantas alucinógenas, em sequências que trazem o diretor argentino Lisando Alonso no elenco, ao lado da estrela britânica Lesley Manville.

"Luca faz filmes que ninguém mais faz, por isso queria trabalhar com ele faz tempo", disse Craig, antes de explicar ao Correio sobre a natureza taciturna de Lee. "O silêncio é o instante de maior fé no ator, pois é o momento em que se pode melhor sentir o espaço. Tento entrar nesse registro sem pensar muito, para não estragar a situação. Eu não li Burroughs durante a minha formação como leitor, fora (o romance) 'Junkie', mas a gente se torna fã depois de lê-lo".

Pilar da prosa beatnik (conceituada por seu interesse por vidas marginais, avessas ao padrão de bom-mocismo da sociedade americana), Jack Kerouac (1922-1969), autor de "Pé na Estrada", chamou Burroughs de "o maior escritor satírico desde Jonathan Swift". O romancista Norman Mailer (1923-2007), famoso por "Os Nus e os Mortos", dizia que o colega beat era "o único escritor americano que pode ser concebivelmente possuído pelo gênio". A acusação de ter assassinado sua mulher, Joan Vollmer, com um tiro supostamente acidental, disparado quando estava doidão de cachaça, em 1951, ampliou sua fama de maldito. A despeito dela, Burroughs foi um autor essencial para a representação da homoafetividade no pós-Guerra, e ampliou seu prestígio com a experiência de linguagem "Almoço Nu", de 1959.

"A imaginação sempre esteve em primeiro plano em sua escrita", diz Guadagnino. "A prosa dele é ao mesmo tempo um soco e uma carícia. Foi o que buscamos neste filme".