Dos Lumière a Honoré, ninguém segura a França

Festejando as dez indicações de 'Emilia Pérez' ao Globo de Ouro, a indústria francesa celebra ano recorde de bilheteria, exporta cults como 'Marcello Mio' e prepara ofensiva para 2025

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Chiara Mastroianni mimetiza o pai, um ícone italiano, em 'Marcello Mio', de Chistophe Honoré

Indicado à Palma de Ouro de Cannes e visto por cerca de 186 mil pagantes em sua pátria natal, "Marcello Mio" chega ao Brasil nesta quinta-feira como foco no italiano mais sedutor (e mais talentoso) que as telas do cinema já conheceram, Marcello Mastroianni (1924-1996), mas é um filme que transpira França em cada um de seus 24 quadros por segundos.

Arrebatador estudo sobre projeção (e sublimação) dirigido por Christophe Honoré, o longa-metragem faz parte do cardápio variado que o audiovisual francês levou às salas de projeção ao longo dos últimos onze meses, empapuçando-se de alegrias.

Há três dias, o novo filme do parisiense Jacques Audiard, o musical "Emilia Pérez", tornou-se o título com mais indicações da corrida pelo Globo de Ouro de 2025, ampliando o prestígio de uma saga cantada contra a transfobia que levou 1 milhão de pagantes às salas de projeção de sua pátria. De quebra, a produção saiu do Festival de Cannes com o Prêmio do Júri e uma láurea coletiva de Melhor Atriz, dividida entre Adriana Paz, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Karla Sofía Gascón, hoje cotada para o Oscar.

Outras duas conquistas fazem de 2024 um ano inesquecível para as redes exibidoras francesas: duas produções geradas pela nação que fundou o cinema (graças aos irmãos Lumière, em 1895) se tornaram fenômenos de arrecadação de dar inveja a Hollywood. De um lado, a comédia "Un P'tit Truc En Plus" somou 10,8 milhões de espectadores; do outro, o épico, "O Conde de Monte-Cristo", recém-chegado ao Brasil, foi prestigiado por 9,2 milhões de espectadoras/es. Estima-se que as cifras se mantenham altas em 2025. É o trabalho que a Unifrance terá no alvorecer do ano que vem.

Esse é o órgão do governo francês cuja missão é assegurar a circulação mundial dos filmes feitos em solo parisiense, em Marselha, em Nice, em Nantes e arredores, realizando um evento anual, chamado Rendez-vous Avec Le Cinéma Français para atrair distribuidores e a mídia. Trata-se de um fórum organizado no Hotel Sofitel Arc de Triomphe, em Paris, sempre em janeiro. Desta vez, vai ser de 14/1 a 21/1. Sua programação de exibições e entrevistas mobiliza estrelas e cineastas.

Por lá devem passar talentos como a diretora Audrey Diwann - que abriu o Festival de San Sebastián, em setembro, com o remake de "Emmanuelle" - e a diva Isabelle Huppert, que presidiu o júri do Festival de Veneza, em agosto. Das novidades que devem espocar por lá, destacam-se a sci-fi "Chien 51", de Cédric Jimenez; a biopic em duas partes "De Gaulle", de Antonin Baudry; a fantasia "Kaamelott: The Second Chapter", que dá continuação ao recordita homônimo de público de 2020, sobre a Távola Redonda; a chanchada "Les Tuche: God Save the Tuche", com o Didi Mocó do Velho Mundo, Jean-Paul Rouve; e o thriller "13 Jours 13 Nuits", de Martin Bourboulon.

Não é raro a França gerar produções que ultrapassam a marca do blockbuster, a julgar dois exemplos que ocupam seu pódio de receitas comerciais milionárias: "A Riviera Não É Aqui" vendeu 20 milhões de tíquetes em 2008, e "Intocáveis", que consagrou Omar Sy, soma 19,4 milhões de bilhetes vendidos, entre 2011 e 2012. Com a chegada da covid-19, houve uma retração severa de faturamento naquele mercado. É fato que a frequência popular às telonas retraiu por todo canto, mas diante do histórico de êxito dos franceses, o susto lá foi grande. O maior sucesso que aquele mercado emplacou em 2022 foi "Qu'Est-ce Qu'On a Tous Fait Au Bon Dieu?", que vendeu 2.429.450 tíquetes. É a terceira parte da franquia de humor "Que Mal Eu Fiz A Deus", iniciada em 2014. É um número expressivo para vida pós pandêmica, mas comparado aos recordes dos outros dois longas dessa cinessérie - o primeiro foi visto por 12,3 mil pagantes e o segundo, de 2019, por 6,6 mil pessoas -, o resultado foi desastroso. Em 2023, as cifras foram bem mais altas, a começar pelo fato de "Astérix & Obélix: O Reino do Meio" (lançado aqui via Netflix) ter vendido 4,5 milhões de tíquetes em dois meses.

Atualmente, quem tem se chegado com jeitinho no coração das plateias da França (para ficar) é "A Fanfarra" ("En Fanfarre"), de Emmanuel Courcol, exibido aqui no Festival Varilux, no mês passado. Vencedor do prêmio de júri popular do Festival de San Sebastián, este misto de comédia e drama acompanha a luta pela vida do maestro Thibaut (Benjamin Lavernhe), que, em meio à luta contra uma doença terminal, descobre ter um irmão (Pierre Lottin), também apaixonado por música.

No Brasil, além da boa acolhida ao drama histórico "A Favorita do Rei", de Maïwenn, já em cartaz, a França pode lotar salas com "Marcello Mio", apoiada no desempenho tocante de Chiara Mastroianni. Laureada na Croisette, em 2019, com o prêmio de Melhor Interpretação por "Quarto 212", de seu habitual parceiro Christophe Honoré, a atriz presta um lúdico tributo ao pai num filme no qual desconstrói sua identidade, trazendo antigos amores de seu passado (Benjamin Biolay e Melvil Poupaud) para a trama. No enredo, Chiara, aos 52 anos, enfrenta uma crise pessoal e profissional ferrenha, cansada de ouvir por todos os cantos da França que é um clone de Marcello. Uma vez que a semelhança é tão feroz, ela decide viver como o mítico campeão de bilheteria italiano. Passa a se vestir como ele, passa a falar como ele. A incorporação de Chiara consegue ser tão convincente que as pessoas começam a acreditar e passam a chama-la de "Marcello". Em algum momento, contudo, essa metamorfose há de pesar sobre os ombros dela e de sua mãe, Catherine Deneuve.

Com enredos criativos assim, a França sempre se renova.