Cronenberg de vísceras expostas

Cinemateca Francesa abre 2025 com uma grandiosa retrospectiva do artesão autoral canadense, conhecido como o papa do 'body horror', exibindo seu longa mais recente, 'O Senhor dos Mortos'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

David Cronenberg em 'Star Trek Discovery': o cineasta de 81 anos ganha tributo na Cinemateca Francesa

Dedicada hoje à celebração (póstuma) do centenário de Marlon Brando (1924-2004) e a uma mostra de 25 títulos de terror essenciais (com "Suspiria" e "O Iluminado"), a Cinemateca Francesa está arrumando a casa para um evento, agendado de 20 de janeiro a 7 de fevereiro, que há de encharcar suas instalações de sangue, vísceras e tomadas de câmera geniais: uma retrospectiva do canadense David Cronenberg. Vai ter "Scanners" (1981), "Videodrome" (1983) e "A Mosca" (1986), só para citar sua fase mais pop, além de "Crash: Estranhos Prazeres", que lhe valeu o Prêmio do Júri de Cannes, em 1996.

Haverá até bate-papo com seu muso: o ator e também diretor Viggo Mortensen. Os dois engataram uma parceria com "Marcas da Violência" (2005) e que alçou voo com "Senhores do Crime", pelo qual o astro nova-iorquino de origem escandinava foi indicado ao Oscar, em 2008. A abertura do festival parisiense dedicado ao papa do body horror (filão hoje em voga graças ao sucesso de "A Substância") não terá o rosto de Viggo em destaque e, sim, o de Vincent Cassel. O francês protagoniza "O Senhor dos Mortos" ("The Shrouds"), thriller que levou Cronenberg à disputa da Palma de Ouro, em maio, e abre os festejos que a Cinemateca preparou para celebrar uma filmografia de tripas escorrendo.

"Desde o início, Cronenberg impressionou o público com seus filmes desafiadores, nos quais a carne - enxertada, contaminada e mutilada - representa os medos contemporâneos. Essa vestimenta de mestre do terror era estreita demais para ele", diz o texto de apresentação da Cinemateca Francesa. "Cronenberg passou dos cinemas locais (do Canadá) para os maiores festivais do mundo e seguiu com uma série de obras-primas labirínticas nas quais suas obsessões - sexualidade, psicanálise, violência e mudanças tecnológicas - são implantadas".

O mote dessa programação é comemorar os 55 anos da estreia de Cronenberg em longas, demarcada pelo lançamento de "Stereo" (1969). Desde então, ele cativou um público fiel em salas de projeção, que levou consigo para o streaming. Seu filme anterior, "Crimes Of The Future" (2022), foi adquirido pela MUBI e devidamente acalentado em sua plataforma (www.mubi.com) após uma avassaladora carreira em festivais e no streaming. Brilhou em sua passagem por Cannes, onde parte da plateia deixou a projeção incomodada com a representação da fisiologia humana. Monumental, a fita é uma ficção científica catastrofista, sobre um artista plástico (um brilhante desempenho de Viggo) que esculpe seu próprio organismo. Foi projetada ainda no 70º Festival de San Sebastián, no norte da Espanha, numa homenagem a seu realizador, de onde ele saiu com o troféu Donostia, láurea honorária referente ao conjunto de sua obra, que cada vez mais reflete seu olhar sobre a finitude.

"Toda a verdade está no corpo: trememos quando temos medo; esquentamos quando nos apaixonamos ou temos desejo; desenvolvemos manchas quando intoxicados. O corpo fala o que a linguagem verbal não tem coragem de expor", disse Cronenberg ao Correio da Manhã, em San Sebastián, e falou pela primeira vez de "O Senhor dos Mortos".

Saudade e luto

Sete anos atrás, enquanto curtia uma pausa em sua carreira cinematográfica para se dedicar a um projeto literário, Cronenberg enviuvou com a perda de sua companheira, a montadora e diretora Carolyn Zeifman. A saudade e o luto que cercam essa perda serviram de base para "O Senhor dos Mortos". Nele, Cassel vive Karsh, um produtor de vídeos e empresário bem-sucedido que vive da melancolia alheia. Sua empresa, a GraveTech, localizada num cemitério que pertence a ele, permite que seus clientes vejam a deterioração dos cadáveres de seus entes queridos já finados. Certa noite, vários túmulos são violados, incluindo o de sua esposa (papel de Diane Kruger), o que o leva a engatar uma investigação.

"As cerimônias religiosas costumam operar na base do velamento, num princípio de encobrir o que as pessoas perderam, e eu preferi construir uma dramaturgia em que isso fosse desvelado e exposto a um limite de enfretamento, pois não penso na decadência dos corpos. Penso nas experiências que registramos", disse Cronenberg em Cannes.

Aos 81 anos, o nome do realizador canadense é cercado por uma Cronenbergmania que ronda a Europa - e não só ela - e só faz crescer.