Custa, mas uma hora o amor chega

Revelada por Cannes há dois anos, 'Crônica de uma Relação Passageira', comédia romântica que renova o gênero, chega enfim ao Brasil propondo uma reciclagem de códigos afetivos

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O amor entre Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simón (Vincent Macaigne) se desenrola com humor em 'Crônica de uma Relação Passageira'

Levou um tempão, dois anos e sete meses contados dia após dia, mas, enfim, a comédia romântica mais arrebatadora da Europa nesta década, "Crônica de uma Relação Passageira", vai enfim chegar ao circuito brasileiro. A Mostra de São Paulo prestigiou essa joia em 2022 e o Varilux a projetou em 2023. Agendaram e reagendaram seu lançamento múltiplas vezes. De hoje, não passa: o diretor Emmanuel Mouret acabou por encontrar tela no Rio de Janeiro.

Sua estética segue a dica de um francês, o dramaturgo Jean Anouilh (1910-1987), autor de "O Viajante Sem Bagagem", que afirmava: "Existe o amor, é claro, e existe a vida, sua inimiga". Essa percepção foi combatida pelo cinema de muitas formas, sobretudo pelo filão apelidado de RomCom, que teve "Uma Linda Mulher" (1990) e "Sintonia de Amor" (1993) como ápices - em Hollywood, pelo menos. Bem antes disso, o Brasil cravou "Todas as Mulheres do Mundo" (1966), de Domingos Oliveira, e a França teve François Truffaut (1932-1984), com seus "Beijos Proibidos" (1968). É de lá mesmo, de terras francesas, que vem "Chronique d'une Liaison Passagère", um estudo sobre o desatino no gostar (de alguém).

No sapatinho, sem fazer alarde, o trabalho mais recente do cineasta Emmanuel Mouret virou cult no âmbito dos afetos. Nasceu na mostra Cannes Première de 2022 e vendeu cerca de 320 mil ingressos em solo francês, um ano e meio após a consagração de Mouret com "Les Choses Qu'On Dit, Les Choses Qu'On Fait", considerado sua obra-prima. Este ano, ele voltou ao circuito com "Três Amigas", lançado no Festival de Veneza. A desenvoltura dele no terreno da RomCom é surpreendente, a se julgar pelo estilo de recorrente azedume de seus filmes. O que ele arranca de Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne evoca Meg Ryan e Tom Hanks em longas como "Mensagem Pra Você" (1998).

"A dinâmica deste filme é livre, operando com lima mulher que se reconhece autônoma, sem amarras, e um homem que se sente culpado por deseja-la", disse Sandrine ao Correio da Manhã em Paris, durante o fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français. "O que me atraiu para esse projeto foi a possibilidade de construir uma figura feminina que, apesar de conhecer o medo da solidão, escolhe viver".

Macaigne virou seu ator assinatura. Barbudinho, taquicárdico, sem prumo em suas incertezas e falador, ele encarna o obstetra Simón, a quem transforma num ímã de gargalhadas. A gente ri de nervoso com as inseguranças dele ao conjugar o verbo "eu quero". Na trama, ele, casado e pai, passa a arrastar um caminhão por uma mulher empoderada, mãe solteira e cheia de certezas chamada Charlotte, interpretada pela campeã de bilheteria Kiberlain. Durante a sessão do longa em Cannes, o Palais des Festivals vinha abaixo de rir com os dois. Sua dramaturgia se estrutura sobre um acordo que os dois travam para transarem sem culpa: vai ser passageiro. Deveria, mas não é. A delicadeza com que Mouret, à direção, explora o modo nada barthesiano com que o discurso amoroso se fragmenta é envolvente.

"Existem diretores cinéfilos que buscam reproduzir na tela aquilo que eles viram de melhor, e há cineastas como eu, que exploram a liberdade, que buscam a surpresa, ainda que sob a luz do que viram antes", disse Mouret ao Correio, também no Rendez-vous. "Existe um gênero, o 'filme de amor', que já passou por Woody Allen, por Truffaut, mas existe algo além. Existe a moral que nos prende a uma forma de querer".

Em 2021, ele reinou nas indicações ao César. O Oscar à francesa é entregue desde 1976 pela Académie des Arts et Techniques du Cinéma, nos mesmos moldes da Academia de Hollywood. Trata-se de um troféu de bronze estimado em cerca de € 1,5 mil, batizado com o nome de seu escultor, César Baldaccini (1921-1998), artesão do Nouveau Réalisme europeu. Mouret brigou por esse troféu em várias frentes ao se apoiar na tese de que a paixão é um analgésico para as dores do mundo, expressa no drama "Les Choses Qu'On Dit, Les Choses Qu'On Fait". Sua narrativa mostra o encontro inesperado entre dois jovens que se apaixonam, mesmo ela já estando envolvida com um outro homem, de quem está grávida.

"Existem códigos que levamos para o dia a dia de nossas relações que nasceram com o cinema, em tela grande, como troca simbólica. Mas nós repetimos esses elementos simbólicos na vida real A maneira como o cinema afetou a realidade consciente que vivemos me faz pensar que não há apenas sexo envolvido na aproximação entre duas pessoas, há um sentimento de pertença, existe um carinho", diz o cineasta. "A maneira que eu tenho para expressar essa relação é pelo lirismo, que pode ser triste, sem perder seu vigor".