CRÍTICA FILME - JURADO Nº 2: A excelência no banco dos réus
Dois meses antes de assumir o manto (e a Magnum 44) do tira Dirty Harry em "Perseguidor Implacável" (1971), Clint Eastwood fez sua estreia como cineasta ao lançar "Perversa Paixão", que custou US$ 960 mil e faturou US$ 10,6 milhões. Estreou falando de desatinos, ao narrar a tensa relação de uma ouvinte com seu radialista favorito, mediada pela canção "Misty". Num dado momento do roteiro, o personagem de Clint (que dirigia e atuava, como fez numerosas vezes) se pergunta que responsabilidade teria sobre o descontrole emocional (nas raias da violência) de uma fã aparentemente apaixonada.
Essa hipótese de um potencial fardo se estendeu por uma série de filmes rodados pelo (hoje nonagenário) astro. Até Will Munny, o pistoleiro famoso por "matar homens, mulheres, crianças e tudo o que se arrasta sobre a terra", no oscarizado faroeste "Os Imperdoáveis" (1992), nalgum momento se perguntava sobre o quão responsável era pelo ódio que o movia. Em "Menina de Ouro" (2004), pelo qual Eastwood ganhou seu segundo Oscar de Melhor Direção, o treinador Fran Dunn (interpretado por ele) tomava decisões trágicas - tomado pelo senso dessa tal responsabilidade tão cara ao realizador -, zeloso pelo bem-estar da pugilista Maggie (Hillary Swank).
Culpa é, portanto, uma sina que alimenta a dramaturgia filmada por esse multiartista dos anos 1970 até "Jurado n°2" ("Juror #2"), hoje na Prime Video. Seu novo (e eletrizante) longa-metragem faz do substantivo tão precioso para seu cineasta, "culpa", o objeto de suas reviravoltas.
Eleito um dos dez melhores filmes de 2024 segundo o National Board of Review, o misto de suspense jurídico e drama existencialista ambientado em Savannah, na Geórgia, é um tratado humanista sobre direitos, deveres, atos e consequências. Nenhuma figura em cena se limita a um arquétipo, numa estrutura dramática (madura) que foge do maniqueísmo. Todos têm as fragilidades expostas, sendo que algumas fraquezas ficam mais evidentes e outras são tratadas com sutileza, no traço de uma Comédia Humana na qual a vaidade e a incerteza são fantasmas presentes. A dúvida é o espectro que quizila o protagonista, o jornalista Justin Kemp (Nicholas Hoult, em brilhante atuação). O repórter é alcoolista e anda às voltas com a possibilidade de ter atropelado uma jovem, que morreu enquanto fugia do namorado agressor.
A chance de tê-la matado povoa sua mente enquanto assume a tarefa de integrar um júri para julgar o caso da morte da moça, que tem o tal namorado como réu. A cada dia de deliberações do coletivo incumbido de analisar o caso, Justin põe em dúvida suas atitudes na noite em que a vítima foi morta. Noite em que estava bêbado e conduziu seu carro embriagado. Hoje, ele preserva sua sobriedade nos Alcoolistas Anônimos (AA), sobretudo sob os conselhos de seu padrinho, Larry (Kiefer Sutherland, o Jack Bauer de "24 Horas"). Estar sóbrio, entretanto, não expia sua angústia de ser (possivelmente) o culpado. Ao perceber os pré-conceitos de seus e de suas colegas, as juradas e os jurados, mobilizados por uma promotora de verve justiceira (a sempre inspirada Toni Collette, que foi mãe de Hoult em "Um Grande Garoto"), Justin cai mais fundo no fosso do tormento.
Esse buraco já foi explorado por Eastwood antes, em "Sobre Meninos e Lobos" (2003). Havia um feminicídio lá também, mas o contexto era outro: o pai da vítima suspeitava de que um de seus melhores amigos seria o assassino de sua filha. Apesar da diferença de enredo, os dois longas compartilham o interesse pelos pactos de silêncio que circundam fardos, num ranço do processo civilizatório. As rachaduras nos códigos que tornam um indivíduo civilizado sempre se fizeram notar no cinema de Eastwood e voltam à tona nesta produção de US$ 35 milhões, cuja base é um argumento do dramaturgo Jonathan Abrams.
Coadjuvante, o policial aposentado Harold (J. K. Simmons, que quase toma o filme para si), vai alargar os dilemas de Justin (e os nossos) ao questionar a forma como o caso é conduzido pela promotoria, dada a ambição da advogada Faith Killebew (o papel de Collette, bem dublada por Monica Rossi) para condenar o potencial suspeito. Ela tem fome de veredictos implacáveis, pois estes podem lhe garantir a promoção profissional tão esperada. O custo desse sucesso, contudo, é alto.
Parceiro habitual de Eastwood de 1977, Joel Cox assina a montagem de "Jurado N°2", o que assegura o equilíbrio entre tensão e reflexão. Yves Bélanger assina a fotografia, buscando um tônus claustrofóbico nos enquadramentos, sempre com cores rebuscadas. Essa claustrofobia é sintoma comum a muito do que Clint filmou, mesmo em registros dissociados do crime (vide o sublime "Bird", de 1988), e ilustra o apreço dele por almas em condições de opressão, mesmo aquelas que são oprimidas pela própria consciência, como a dona de casa (Meryl Streep) às voltas com o amor extraconjugal da obra-prima "As Pontes de Madison" (1995) ou o ladrão que testemunha um assassinato em "Poder Absoluto" (1997). Cada indivíduo desse é um tijolo no edifício da autoralidade de um contador de histórias capaz de dialogar (nas raias da excelência) com a tradição hollywoodiana de gênero, temperando cada filão com suas inquietudes.
Um dos filmes mais sólidos do ano, "Jurado n°2" chega ao Brasil pelo streaming da Amazon, com uma dublagem primorosa, a se destacar o desempenho de Philippe Maia como a voz nacional de Hoult.