Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Roteirista de "Taxi Driver" (1976) e "Touro Indomável" (1980), Paul Schrader tem um dedo nervoso nas redes sociais. Ativíssimo no Facebook, com desabafos passionais sobre os longas-metragens que amou, o cineasta de 78 anos anunciou esta semana sua estreia no formato audiobook, com o lançamento de uma versão em áudio de seu seminal livro de ensaios "Transcendetal Style In Film: Ozu, Bresson, Dryer".
Na Amazon, rola a chance de comprar a versão portuguesa (em papel) de seu monumental estudo sobre mestres da tela por R$ 141,37, numa publicação da lusitana Edições 70. Traduções mais recentes desse seu tratado sobre linguagem cinematográfica (de filtro autoral) pipocaram conforme o cineasta viu seu prestígio subir de patamar com o culto a "Fé Corrompida" ("First Reformed", 2017), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Original. É possível alugar essa joia na plataforma Prime Video, enquanto se espera pela estreia do longa mais recente de Schrader em nosso circuito: "Oh, Canadá", indicado à Palma de Ouro de Cannes. Neste fim de semana, a produção estreia em salas italianas e segue em cartaz em cinemas lusos, tendo sido lançado na terrinha no dia 9.
Com um script impecável, essa produção é vitaminada pela atuação mais madura da carreira de Richard Gere. O galã de "Uma Linda Mulher" (1990) interpreta um documentarista em estado terminal que relembra do tempo em que desertou da Guerra do Vietnã. É um estudo sobre o pacifismo e a noção de pátria. O personagem de Gere, Leo Fife, é vivido por Jacob Elordi em sua fase mais jovem.
Questionamentos
"No livro que deu origem ao projeto ('Foregone', de Russell Banks), o protagonista é era diretor de documentários e eu mantive esse registro no filme", disse Schrader ao Correio da Manhã na coletiva do longa em Cannes, onde foi questionado sobre a centelha revolucionária da Nova Hollywood, a onda que renovou a maneira de se filmar nos Estados Unidos de 1967 a 1981, engajando o audiovisual num questionamento de práticas moralistas.
Contemporâneo de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Steven Spielberg nesse movimento, ele fez fama pela escrita de roteiros antes de estrear como realizador, em 1978, com "Vivendo na Corda Bamba". Dirigiu cults como "Hardcore: No Submundo do Sexo" (indicado ao Urso de Ouro de 1979), "A Marca da Pantera" (1982) e "Auto Focus" (nomeado à Concha de Ouro de San Sebastián em 2002). Uma de suas mais recentes (e melhores) incursões por trás das câmeras está no cardápio da Netflix, mas vai sair desse menu já, já: "O Contador de Cartas" ("The Card Counter"). Eleito pela revista "Cahiers du Cinéma" (bíblia do audiovisual) um dos dez melhores filmes de 2021, esse thriller concorreu ao Leão de Ouro de Veneza.
Nele, o ator Oscar Isaacs vive William Tell, um ex-militar com TOC que virou um bamba do carteado ao largar uma vida na caserna na qual coordenava tortura. Um rapaz em busca de vingança (o ótimo Ty Sheridan) e a representante de um cartel de jogo (Tifany Haddish) vão leva-lo a desafiar seus pudores e traumas.
Ponto onírico
Já na Amazon Prime, Schrader comparece com o devastador "O Jardim dos Desejos" ("Master Gardener", 2022). Há um momento sublime de catarse nesse thriller no qual o protagonista, o jardineiro Narvel Roth (Joel Edgerton), passa por uma mata de beira de estrada e a vê florescer, vicejando flores reluzente em plena noite. É um raro ponto de onirismo num filme cravejado de espinhos morais. É um rasgo da metafísica que o diretor Paul Schrader carrega de sua formação religiosa, já notada antes no supracitado "Fé Corrompida" (sua obra-prima). Seu interesse pelos ritos da fé cristã dá àquela trama (muito bem defendida por Ethan Hawke e Amanda Seyfried) uma dimensão de metáfora refletindo os calvários de um mundo polarizado por diversos ódios.
Percebe-se um ar de mistério na trama envolvendo Narvel e seu passado de sujeiras, expressas na pele de seu peito e de suas costas (cobertas por tatuagens). Figura impávida, mas eivada por inquietações existencialistas, Narvel é um guerreiro nato com um histórico de mortes sobre os ombros. A luta para manter domesticado o lobo do homem em sua alma imprime uma tensão crescente em torno de um filme delineado pela onipresente trilha musical de Devonté Haynes.
No meio das rosas de Gracewood Gardens, Narvel vai ser mais do que um cuidador de pétalas e corolas. Ele é seu guardião, seu brinquedo sexual e seu faz-tudo. Sua tarefa mais árdua será assumir a guarda da problemática sobrinha-neta da patroa, a jovem Maya (Quintessa Swindell), a quem vai transformar em uma aprendiz do cultivo de flores.
Na Amazon Prime, Schrader comparece ainda com "Temporada de Caça" ("Affliction", 1997). Esse filmaço conta com um elenco em estado de graça, coroado por um Oscar de Melhor Coadjuvante dado a uma lenda do cinema moderno, James Coburn (1928-2002). Na trama um professor (Willem Dafoe) narra os estranhos acontecimentos em torno de seu irmão, Wade (Nick Nolte, brutal em cena), que perde a lucidez em meio à investigação de um assassinato, assombrado pelo legado machista e violento de seu pai (Coburn).