Com os caminhos abertos para a consagração e (segundo as especulações hollywoodianas) ao Oscar, à força de uma Palma de Ouro, "Anora" será a cereja de um bolo gelado que inaugura o circuito anual das mostras competitivas do cinema mundial sob a pesada neve da Sérvia: o Küstendorf International Film and Music Festival. Na próxima quarta-feira, um dia antes de a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciar os concorrentes à sua estatueta dourada, o realizador Emir Kusturica (de "Gata Preta, Gato Branco") inaugura a 18ª edição do evento que idealizou em seu próprio lar, um resort na vila de Mokra Gora.
Ela fica na fronteira com a Bósnia, a cerca de três horas de Belgrado. Por lá serão exibidas produções dos mais variados cantos do mundo, com 16 títulos na competição oficial, só de curtas-metragens, organizada sob uma filosofia de tolerância zero com o imperialismo. O longa que conquistou o prêmio máximo de Cannes, protagonizado por Mikey Madison, sob a direção de Sean Baker (de "Projeto Flórida"), passa por lá na seção Contemporary Tendencies, ampliando seu prestígio às vésperas da estreia comercial em muitos países. No Brasil, seu lançamento será no dia 23.
"Dos Estados Unidos, nós vimos o melhor e o pior, pois, durante a Era de Ouro de Hollywood, recebemos de lá filmes brilhantes e músicas geniais, o que durou até os anos 1980, quando a excelência poética daquele país foi desviada para a tecnologia, num investimento na produção de armas. Ainda temos, contudo, vozes autorais a ecoar de lá", disse Kusturica ao Correio da Manhã, ao justificar a pluralidade das escolhas de Küstendorf, incluindo a presença de um longa como o de Baker (nascido em Nova Jersey há 53 anos), que oxigena a cartilha indie. "A cada ano, chegam mais filmes para selecionarmos. Meu cuidado é oferecer a plataforma ideal para que cineastas de todo o mundo possam exibir seu trabalho de maneira confortável".
Para assegurar à projeção de "Anora" holofotes à altura da boa reputação que essa comédia amarga constrói desde maio passado, com a consagração em Cannes, Kusturica convidou um dos atores da fita, o russo Yura Borisov para papear com a plateia de Küstendorf. Ele concorreu ao Globo de Ouro e está na disputa do Bafta (troféu britânico) por seu bom desempenho como coadjuvante na saga da stripper Ani (interpretada por Mikey Madison), que se mete numa série de peripécias arriscadas ao casar com um milionário eslavo doidão. A trama lembra Cinderela, mas sem sapatinho de cristal.
"Não acredito que 'Anora' traga uma síntese da juventude de hoje, mas afirmo que ele, em sua essência, foge de qualquer glamourização do universo do sexo que retrata", disse Baker ao Correio, em entrevista via Zoom, explicando que edita seus próprios filmes, numa montagem pautada por um distanciamento crítico. "Olho para as imagens que rodei como se eu fosse um documentarista a fitar o real, e monto em ordem cronológica".
Ao lado de "Anora" na vitrine das tendências contemporâneas de Küstendorf, Kusturica exibirá ainda "É Só Por Um Tempo", de Fei Long (China); "O Ano Novo Que Nunca Veio", de Bogdan Muresanu (Romênia); "Aicha", de Mehdi Barsaoui (Tunísia), e "Stolen", de Karan Tejpal (Índia), que encerra a programação, no sábado. No mesmo dia, serão anunciadas as vitórias da seleção competitiva, decididas por um júri formado pela atriz e teórica Ksenija Zelenovic e os diretores Edoardo De Angelis e Giacomo Abruzzese. Este leva na mala para Mokra Gora o documentário inédito "América", a ser exibido para o público na seção New Authors.
Envolvido hoje com um projeto de longa de ficção baseado em Dostoiévski chamado "Crime No Punishment", Kusturica vai exibir em sua Disneylândia cinéfila os dois sucessos de bilheteria que lhe deram um par de Palmas douradas em Cannes: "Quando Papai Saiu Em Viagem de Negócios", de 1985, e "Underground - Mentiras de Guerra", de 1995. Ambos terão sessões numa salinha de projeção chamada Cine Stanley Kubrick, em tributo ao realizador de "2.001 - Uma Odisseia No Espaço' (1968). O restaurante local, que serve pratos típicos como Urnebes (um queijo branco coberto de especiarias tipo páprica), é chamado de Visconti, em referência ao realizador de "O Leopardo" (1963). O cardápio sempre tem salada de beterraba, risoto de legumes e presunto defumado.
Leitor de Machado de Assis (1839-1908) e entusiasta do presidente Lula, o anfitrião de Küstendorf filmou em solo sul-americano duas vezes. Rodou "Maradona por Kusturica" (2008) na Argentina (a louvar o Pibe de Oro dos gramados) e "El Pepe, Uma Vida Suprema" (2018), sobre octogenário líder uruguaio Pepe Mujica, no Uruguai.
"Estou em dívida com o Brasil", disse o cineasta. "Nós, sérvios, e vocês, latino-americanos, carregamos, de formas distintas, o fardo de uma luta constante pela sobrevivência de nossas culturas. Tivemos no realismo mágico uma forma comum de luta, e temos grandes craques no futebol também", compara.