Sempre de ombreiras, por alegar aversão à sensação de frio nas omoplatas, David Lynch fez do cigarro seu companheiro por toda uma vida, que terminou aos 78 anos na última quinta, sob a fricção do enfisema pulmonar que começou a inviabilizar sua permanência nos sets, por travas respiratórias. Seu imaginário, entretanto, nunca foi travado por nada, apostando no insólito ao fragmentar signos que, no senso comum, deveriam ser domesticáveis.
Por isso, um casal idoso de feições fofas adquire uma perspectiva assustadora numa sequência de “Mulholland Drive”, que lhe rendeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes de 2001. O insólito era o dispositivo que guiava a narrativa do cineasta e artista visual americano, nascido em Montana em 20 de janeiro de 1946. Sua recente participação como ator em “Os Fablemans” (2022), de Steven Spielberg, no papel do mítico realizador John Ford (1894-1973), foi um presente para quem ansiava por recuperar contato com sua filmografia, que se alternava entre longas, vídeos, curtas (como “What Did Jack Do?”, hoje na Netflix) e a série “Twin Peaks”, um cult da década de 1990 retomado em 2017, com direito à projeção no Palais des Festivals na Croisette. Havia um outro seriado, “Urecorded Night”, entre os projetos que sua fraqueza pulmonar encerrou, interrompendo uma filmografia coroada com a Palma de Ouro por “Coração Selvagem” (1990).
Quando Lynch estreou na direção de longas, em 1977, com “Eraserhead”, o audiovisual dos EUA curtia os momentos finais da centelha revolucionária chamada Nova Hollywood, a onda que renovou a maneira de se filmar por lá, a partir 1967, engajando a indústria cinematográfica num questionamento de práticas moralistas. Faziam parte desse bonde Martin Scorsese, Brian De Palma, Francis Ford Coppola, Elaine May, George Lucas e o já citado Spielberg, que tinham uma mirada de revisão simbólica da América. Na reta final, despontaram vozes autorais que se preocupavam com as entranhas desse país de ambição (e ego) continental: John Waters, John Carpenter e Lynch, catapultado ao estrelato com “O Homem Elefante”, em 1980. Ali, já de fazia notar seu apreço pela estranheza, que entrou em erupção pela primeira vez em “Veludo Azul”, que lhe valeu uma indicação ao Oscar.
No início desta década, uma de suas iguarias, uma adaptação (finalizada em 1984) do romance de tom sci-fi “Duna”, de Frank Herbert (1920-1986), ganhou sobrevida, a reboque da nova versão desse tratado literário da fantasia feita pelo canadense Denis Villeneuve. Nessa nada ortodoxa ficção científica lynchiana, Kyle MacLachlan, o ator fetiche do cineasta nos anos 1980, foi escalado para viver o messiânico aristocrata das estrelas Paul Atreides. Esse longa pode ser visto hoje na plataforma Prime Video da Amazon, onde se encontra muita coisa de Lynch.
Seu “Duna” marcou época por sua desastrosa carreira comercial e por um visual considerado cafona para a era em que os efeitos visuais se tornaram essenciais. Lynch chegou a refutar a autorização para deixar sua assinatura em uma versão estendida (do que filmou a partir da literatura de Herbert) proposta para a TV. Esse formato ampliado, com cerca de 50 minutos a mais do que o corte original, com duas horas e 17 minutos, chegou a ser editado em DVD, sendo disputado pelos fãs de DL. Confusões à parte, a produção tão... exótica... filmada por ele em meados da década de 1980 está de novo no meio de nós, na Amazon. O tempo lhe fez bem, pois é difícil não se divertir com sua bizarrice e com a presença do cantor Sting no elenco. Infelizmente, a versão disponível nas plataformas digitais não preservou a dublagem original, com Garcia Júnior emprestando o vozeirão a MacLachlan.
Ainda sob o impacto da trilogia original de “Star Wars”, lançada por George Lucas de 1977 a 83, o produtor italiano Dino De Laurentiis (1919-2010) farejou nos parágrafos de Herbert uma mina de ouro. Antes de Lynch ser convocado para pilotar essa narrativa, vários nomes famosos foram cotados para pilotar o épico futurista messiânico sobre um jovem aristocrata, Paul Atreides (MacLachlan, em sóbria atuação), filho do Duque Leto (Jürgen Prochnow), cuja missão é guiar seu povo na busca pela Especiaria (chamado “tempero” em algumas traduções). Trata-se de uma substância capaz de garantir a sobrevivência de sua raça. Saído do sucesso de “Alien – O Oitavo Passageiro” (1979), Ridley Scott foi um dos talentos cotados para rodar o longa. Só não assumiu o compromisso por problemas pessoais que o afastaram dos sets por um período que coincidia com a rodagem prevista por De Laurentiis.
Antes dele, Jack Nicholson, que se meteu a cineasta em “Com a Corda No Pescoço” (1978), chegou a ser cogitado para pilotar essa ficção cientifica de tintas lisérgicas. Por sorte, os ventos da sensatez varreram as pretensões mais surrealistas de Nicholson para longe, uma vez que Dino não via no ator a retidão ideal pra assumir um longa daquele porte. Houve ainda um projeto de “Duna” concebido pelo cineasta, quadrinista, escritor e xamã chileno Alejandro Jodowski, trazendo Orson Welles, David Carradine e – acredite ou não – Salvador Dalí para o elenco. Herbert se incomodou com as... “liberdades criativas” do diretor de “El Topo” (1970), que é também quadrinhista. Sem o carimbo de aprovação do escritor, Jodorowsky saiu da empreitada.
Na busca de um diretor com a cabeça fresca de ideias para rodar “Duna”, Dino De Laurentiis resolveu convocar o responsável pelo aclamado “O Homem Elefante”, que havia sido indicado ao Oscar e estava em seu apogeu. Com um orçamento que inflacionou até beirar US$ 45 milhões, investidos em uma filmagem tortuosa, que durou de 29 de abril de 1983 a 8 de fevereiro de 1984, “Duna” foi um fracasso comercial doloroso para Dino De Laurentiis e seus associados. Nas bilheterias, o longa, cujas locações forma buscadas na Califórnia e no México, teve uma arrecadação de cerca de US$ 27, 4 milhões. Apesar dessa decepção financeira, um clássico trôpego nasceu ali, com a assinatura autoral de Lynch, em seu olhar para o sonho. Um olhar que nos salvou da mesmice.
No próximo dia 31, o Estação NET Botafogo vai exibir “Eraserhead”, às 23h59.