Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Química do prestígio de Demi Moore

Demi Moore conquistou o Globo de Ouro por 'A Substância' e desponta na corrida do Oscar | Foto: MUBI/Divulgação

Já em streaming, na grade da MUBI, "A Substância" ("The Substance") pode voltar ao circuito exibidor nas próximas semanas dependendo do quanto confirmar seu favoritismo no coração cinéfilo nesta manhã, quando seu título é esperado em múltiplas categorias durante o anúncio dos indicados ao Oscar 2025. Estrelas em ascensão, Rachel Sennott e Bowen Yang vão anunciar os concorrentes. Embora o coração brasileiro esteja em batucada por "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, e sua estrela, Fernanda Torres, é forte a torcida para que o terror dirigido pela francesa Coralie Fargeat ganhe holofotes na festa anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Demi Moore, em sua atuação redentora, é o foco do ardor por essa produção de US$ 17,5 milhões que já arrecadou US$ 76,5 milhões mundo afora. As nomeações hollywoodianas serão transmitidas hoje ao vivo, via YouTube, a partir das 10h30. A URL www.oscars.org dá o caminho das pedras. A cerimônia de entrega das estatuetas está agendada para 2 de março, no Dolby Theatre, em Los Angeles, com Conan O'Brien como mestre de cerimônias.

A plataforma www.mubi.com já se antecipou ao provável êxito de Coralie e agendou para 1° de fevereiro a inclusão em seu menu do primeiro longa da cineasta: "Vingança" (2017). Aos 48 anos, ela estreou como realizadora em 2003, com o curta-metragem "Le Télégramme". O filme seguinte que rodou, "Reality " (2014), está na MUBI já. A corrida por sua obra é intensa, como decorrência da coqueluche provocada por "A Substância", que conquistou 74 láureas desde sua primeira exibição, em maio, no Festival de Cannes, onde recebeu a láurea de Melhor Roteiro.

É difícil não divagar sobre biologia diante das sequências filmadas por Coralie com Demi. Num trecho do livro "O Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX", de 1984, a zoóloga e filósofa americana Donna J. Haraway afirma: "As máquinas do final dos anos 1900 tornaram completamente ambígua a diferença entre natural e artificial, mente e corpo, autodesenvolvimento e design externo, e muitas outras distinções que costumavam ser aplicadas a organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas, e nós mesmos somos assustadoramente inertes".

Esse parágrafo poderia ser a sinopse de "A Substância". Sua engenharia não é metálica, é de carne. Uma carne que se molda ao bel-prazer da cultura da celebridade como se fosse uma placa de aço transcendendo em forma de escultura. As interferências realizadas no organismo que protagoniza seu enredo não se baseiam em ferro fundido, e sim, num soro, num remédio, o que não exclui a analogia com o pensamento de Haraway, centrado em qualquer "ajuste" não biológico num corpo, em qualquer "muleta" que nos tire do limite demasiadamente humano. É o que se passa com a atriz e apresentadora Elisabeth Sparkle, personagem que devolve Demi a uma ribalta que ela havia perdido. Continua na página seguinte

 

Uma crônica do sucateamento físico (e moral)

A diretora francesa Coralie Fargeat com a estrela americana do momento nos sets de 'A Substância' | Foto: Christine Tamalet/Divulgação

Alinhada com o chamado body horror, filão (bem) lapidado pelo canadense David Cronenberg ("A Mosca") e renovado pelo polêmico "Titane" (Palma de Ouro de 2021), essa vertente (cult) do cinema fantástico explora entranhas, artérias, tecidos corporais, músculos, fluídos. Segundo Cronenberg: "Todas as verdades estão no corpo. Temos frio na barriga quando em pânico. Temos febre ao sentir uma infecção. Trememos com ansiedade. O corpo flagra tudo, expõe o que encobrimos".

Nessa lógica, somada ao olhar de Haraway, o longa dirigido (num frenesi crescente) por Coralie fala do sucateamento físico (e antes dele o sucateamento moral) de uma estrela que, aos 50 anos, perdeu a vez na TV. Ao ser descartada, ela faz um pacto com um demônio que se traveste de progresso: a Ciência.

Alvo de capas das maiores revistas de entretenimento da imprensa anglo-saxã, "A Substância" narra a bizarra transformação por que Sparkle passa ao aceitar se submeter a um experimento. Ao ser desligada da emissora onde brilhava num programa de aeróbica, a mando de um executivo de hábitos grotescos (Dennis Quaid, hilário), ela recebe um convite para provar de uma fórmula sintética capaz de rejuvenescê-la. Sem nada a perder, ela prova do tal líquido (injetável) e passa por uma dolorosa mutação que a torna uma moça bem jovem. Essa figura, vivida pela ótima Margaret Qualley (de "Stars At Noon" e da série "Maid"), ganha o nome de Sue. A exuberância em seu olhar e sua destreza na ginástica fazem dela uma diva midiática, tomando o posto que era de Sparkle. As duas deveriam ser uma só, mas acabam por desenvolver personalidades (e vontades) distintas, numa fratura de psique. É Médica e Monstra, Dra. Jekyll e Mrs. Hyde.

Essa rachadura é parte de uma contraindicação do tal soro: o certo era que elas trocassem de lugar, sempre, a cada sete dias, injetando-se novas doses. Se essa exigência de data não for cumprida, efeitos nefastos hão de ocorrer. O mais simples dele é o aumento da agonia no processo de morfismo delas. Há consequências mais graves como a escassez gradual da lucidez e a aparição de sequelas físicas, com marcas, pústulas e monstruosidades diversas. Como bem disse Cronenberg, é a verdade do descalabro se desnudando.

O que começa como um tenso estudo filosófico da vaidade descamba (com vigor) para um terror acelerado, numa metáfora para as criaturas que brotam das faltas de limite no hedonismo nosso de cada dia. Seu trabalho taquicárdico de montagem (construído numa edição feita a seis mãos por Caroline, Jérôme Eltabet e Valentin Feron) jamais deixar a narrativa perder o ritmo, nem abrir mão de sua natureza reflexiva. O carisma de Demi, reciclado, ajuda o longa a cativar plateias e abre um debate (extra fílmico) sobre o prazo de validade de carreiras que um dia arrebataram Hollywood.

A coprotagonista de "Ghost" (1990), que desafiou tabus em "Striptease" (1996), já teve a Meca do cinemão das mãos, mas acabou sendo escanteada conforme avançava na idade, por novas primaveras. O novo viço que Caroline lhe garante é um convite a um debate sobre a mecânica do descarte na indústria do entretenimento. "Uma vez, disseram que eu era uma 'atriz de pipocas', só de filmes populares. Achava que já havia feito tudo o que tinha para fazer quando me chegou esse roteiro fora da caixinha", disse Demi, ao receber seu Globo dourado, no dia 5 de janeiro. Estima-se que o Oscar seja dela. Fortes são as chances de que Fernanda Torres seja sua maior rival.