Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Ainda Estou Aqui' faz história

Fernanda Torres como Eunice | Foto: Adrian Tejido/Divulgação

 

Desde 2020, quando o thriller sul-coreano "Parasita" ganhou quatro Oscars, a festa de maior prestígio da indústria do audiovisual não reserva tanta alegria para a produção feita fora dos EUA, sobretudo a brasileira, quanto se vê em 2025, quando o Brasil vai concorrer à estatueta em três categorias, à força do fenômeno "Ainda Estou Aqui". Pela segunda vez em 97 anos da premiação, o cinema brasileiro vai disputar a láurea de Melhor Filme, concorrendo na categoria mais prestigiosa e desejada da cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O sucesso de bilheteria de Walter Salles - visto por quase 3,7 milhões de pagantes em território nacional - entrou ainda no páreo de Melhor Atriz (via Fernanda Torres) e Melhor Filme Internacional. Antes dele, em 1986, "O Beijo da Mulher Aranha", de Hector Babenco (um argentino de Mar Del Plata radicado em SP), produzido pela paulista HB Filmes, concorreu ao Oscar principal da Meca do audiovisual, mas ganhou noutra seara, a de Melhor Ator (William Hurt).


As chances são altas

| Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

Em 2004, "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, brigou por quatro troféus (roteiro, direção, montagem e fotografia), e não levou nenhum. Salles, que foi indicado há 26 anos por "Central do Brasil" (Urso de Ouro na Berlinale de 1998), tem agora chances altas, sobretudo pelo êxito comercial, em escala global, de sua adaptação do romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva. No próximo dia 7, o drama capitaneado por Waltinho (apelido do diretor carioca) amplia seu circuito nos EUA, o que pode multiplicar sua receita e estender suas chances de vitória em paragens hollywoodianas.

Em 1999, ele disputou a estatueta designada a produções não americanas (então chamado best foreign film) que acabou nas mãos de "A Vida É Bela" (Itália), do ator Roberto Benigni. Naquela data, a saga da escrevedora de cartas Dora rendeu a indicação ao prêmio de Melhor Atriz para a interpretação de Fernanda Montenegro, mãe de Torres. Em "Ainda Estou Aqui", ela e a filha dividem o papel da advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018), que enfrentou a ditadura para descobrir o paradeiro do marido, o ex-deputado e engenheiro Rubens (papel de Selton Mello). Fernandona foi preterida em favor de Gwyneth Paltrow (concorrendo por "Shakespeare Apaixonado"), num dos resultados mais criticados da trajetória das cerimônias da Academia. Este ano, a instituição vai contemplar sua claque de concorrentes no dia 2 de março, em evento no Dolby Theatre, em Los Angeles, tendo Conan O'Brien como apresentador.

As três indicações do Brasil foram divulgadas ontem num anúncio oficial apresentado pela atriz Rachel Sennott e pelo ator Bowen Yang. Eles apontaram o musical "Emilia Pérez", do francês Jacques Audiard (que estreia aqui no dia 6) como o recordista de nomeações do ano, ativa em 13 categorias. Atrás dele, aparecem "O Brutalista", de Brady Corbet (a ser lançado aqui no dia 20 de fevereiro), e "Wicked", de Jon M. Chu (já em cartaz), empatados na caça a dez troféus cada um. Na esteira deles aparece "Um Completo Desconhecido" (a cinebiografia do cantor e compositor Bob Dylan) e o thriller "Conclave", com oito indicações cada.

Estes cinco longas vão encarar "Ainda Estou Aqui" na corrida pelo Oscar principal de 2025, além de outras quatro produções: "Anora", "Duna: Parte 2", "Nickel Boys" e "A Substância", que valeu à cineasta francesa Coralie Fargeat uma indicação à láurea de Melhor Direção. No filme dela está a principal concorrente de Torres, Demi Moore, vivendo uma estrela em decadência que, às voltas com um experimento químico, sofre uma metamorfose. Suas outras rivais são Mikey Madison ("Anora", que ganhou a Palma de Ouro de 2024); Karla Sofía Gascón (única mulher trans que já disputou essa honraria, indicada por "Emilia Pérez") e Cynthia Erivo ("Wicked"). Além do Globo dourado, Torres tem no currículo o prêmio de Melhor Interpretação Feminina de Cannes, que ganhou há 39 anos por "Eu Sei Que Vou Te Amar" (1986).

Protagonista de marcos do nosso teatro ("A Casa dos Budas Ditosos") e de nossa TV ("Tapas e Beijos"), bem-sucedida ainda na prosa, em romances ("Fim" e "A Glória E Seu Cortejo de Horrores"), ela vem sendo elogiada em todos os festivais por onde a saga de Eunice passou, a começar pelo de Veneza, onde o roteiro de Heitor Lorega e Murilo Hauser foi premiado, em setembro. Depois, o longa brilhou em projeções em San Sebastián, Nova York, Toronto e Marrakech, além da Mostra de São Paulo, onde ganhou o Prêmio de Júri Popular. No dia 4 deste mês, a Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ) elegeu a narrativa de Salles para o pódio do Top Ten de 2024, escolhendo-a como seu Filme do Ano. "Com tanto problema hoje em dia no mundo, tanto medo, esse é um filme que nos ajudou a pensar em como sobreviver em tempos como esses", disse Torres na conquista do Golden Globe.

Torres trabalhou com Waltinho em duas outras ficções (ambas rodadas em duo com Daniela Thomas): "Terra Estrangeira, de 1995 (hoje na Netflix), e "O Primeiro Dia", que foi indicada ao Leopardo de Ouro de Roterdã em 1998. Os dois dão protagonismo a mulheres alquebradas por vetores sociopolítico, como é o caso da Eunice Paiva de "Ainda Estou Aqui". Durante os Anos de Chumbo, no começo da década de 1970, ela vê seu companheiro, Rubens ser levado à força para depor, sem nunca regressar. Dali para diante, ela se empenha em dissipar névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos "subversivos", numa trajetória heroica. A montagem espartana de Affonso Gonçalves narra essa luta em saltos no tempo, com direito a uma entrada de F. Montenegro numa sequência de doer na alma. Maria Carlota Bruno ("No Intenso Agora") e Rodrigo Teixeira ("A Vida Invisível") assinam os créditos de produtor desse blockbuster sul-americano, que vem lotando complexos na França e em Portugal.

"O 'Ainda Estou Aqui' é um relato sobre uma mulher que, face à tragédia que se abate sobre sua família, face à uma terrível violência de estado, é obrigada à encontrar novas formas de resistência", disse Salles por e-mail ao Correio da Manhã.

Waltinho passou 12 anos sem rodar longas de ficção depois do lançamento de "Na Estrada" ("On The Road", 2012). Nesse período, lançou o .doc "Jia Zhangke, um Homem de Fenyang" (2014) e rodou curtas ("Quando a Terra Treme"). No certame de Melhor Filme Internacional deste Oscar, o cineasta compete com "Emilia Pérez", com "A Garota Da Agulha" (Dinamarca), "A Semente do Fruto Sagrado" (thriller iraniano que representa a Alemanha, pátria onde seu realizador, Mohammad Rasoulof, está refugiado), e a animação da Letônia "Flow".

À luz da recente oficialização de posse de Donald Trump na Casa Branca, seu controverso biopic, chamado "O Aprendiz" ("The Apprentice"), que pode ser visto hoje na Amazon Prime, colheu duas indicações ao Oscar que ninguém esperava. Sebastian Stan, que interpreta o atual líder dos EUA, vai concorrer ao prêmio de Melhor Ator, e Jeremy Strong (da badalada série "Succession"), vai disputar o troféu de Melhor Coadjuvante, no papel do advogado Roy Cohn, espécie de mentor do político em sua juventude. Lançado em Cannes, na disputa pela Palma de Ouro, o filme de Ali Abbasi (cineasta escandinavo de origem iraniana respeitado por "Holy Spider") quase teve sua estreia comercial vetada pelo comitê de campanha trumpista. O roteiro é centrado no processo de amadurecimento de Donald T entre os anos 1970 e a década de 1980 a partir da relação de aprendizado que ele estabelece com Cohn, que se contamina com o HIV em relações com diferentes parceiros. No auge de seu calvário físico, ele é renegado por seu pupilo, a quem ensinou as manhas sobre como vencer nos negócios no apogeu do capitalismo consumista. A Trump Tower é o primeiro dos acertos de seu "aluno".

Conhecido pela ala nerd pelo papel do Soldado Invernal na franquia Os Vingadores, Stan foi laureado com o Globo de Ouro (e o Urso de Prata da Berlinale) por outro longa, "Um Homem Diferente", indicado à estatueta da Academia de Melhor Maquiagem. Na roda agora com "O Aprendiz", ele tem como maior adversário Adrien Brody, em "O Brutalista". Oscarizado em 2003 por "O Pianista", o astro é a força motriz de uma produção de audaciosa engenharia visual (fotografada em 70mm), de 3h e meia de duração. Trata-se do painel histórico sobre o calvário de um arquiteto húngaro (papel de Adrien) na América do pós-Guerra, sob os auspícios de um milionário excêntrico (Guy Pearce, que concorre ao Oscar dos coadjuvantes). Brody e Stan tem que driblar ainda Colman Domingo ("Sing Sing"), Timothée Chalamet (que canta feito Bob Dylan em "Um Completo Desconhecido") e Ralph Fiennes ("Conclave").

Também não esperava no anúncio da Academia a menção ao nome do ator Jesse Eisenberg na listagem dos potenciais ganhadores do Oscar de Melhor Roteiro Original, por "A Verdadeira Dor". Sua escrita, contudo, é notável, e ele ainda assina a direção, além de atuar ao lado de Kieran Culkin. Outro destaque do já citado seriado "Succession" (da MAX), no papel de Roman Roy, Kieran (irmão de Macaulay Culkin, de "Esqueceram de Mim") fez jus ao favoritismo que arrasta desde as primeiras exibições públicas do longa de Eisenberg ao conquistar o Globo de Ouro de Melhor Coadjuvante. Concorrerá ao troféu da Academia nessa mesma categoria.

A nova empreitada atrás das câmeras de Eisenberg (astro de "A Rede Social", de 2010) é de uma precisão suíça e de uma coragem espartana. O aspecto mais corajoso é a exploração de uma veia cômica para falar tanto de fantasmas do Holocausto quanto de vazios existenciais. Com enquadramentos rigorosamente lapidados (à altura dos olhos de seus personagens), Jesse constrói uma comédia dramática de atuações convulsivas sobre a viagem dos primos David e Benji Kaplan. Os personagens são vividos pelo próprio Eisenberg e por Kieran, que está uma força da natureza em cena, numa viagem pela Polônia da rota dos expurgos nazistas. Essa dramédia estreia aqui na semana que vem.

Todos esses artistas e todos esses longas aqui citados devem ganhar mais destaque comercial nas salas de projeção até o início de março, inclusive com apoio de grandes festivais do Velho Mundo. Roterdã, que começa no dia 30, vai projetar "O Brutalista" e "Ainda Estou Aqui" em sessões de gala. Já "Um Completo Desconhecido" ganha vitrine na Berlinale, que começa no próximo dia 13. No streaming, a Netflix já saliva pela inclusão de "Emilia Pérez" em seu menu, ansiosa pelos feitos de Jacques Audiard em nossos cinemas, no comecinho de fevereiro.

Atração de abertura do Festival do Rio, em outubro, "Emilia Pérez" nasceu para as telas no Festival de Cannes, em maio, e, depois, vendeu 1.067.268 tíquetes em seu país. Na Croisette, na disputa pela Palma de Ouro, Audiard ganhou o Prêmio do Júri pela saga (cantada em espanhol) de um chefão do tráfico do México, chamado Manitas, que transiciona e assume identidade feminina, renascendo como Emilia.

O papel é da espanhola Karla Sofía Gascón, que saiu de Cannes com um prêmio coletivo de atuação feminina compartilhado com Adriana Paz, Selena Gomez e Zoe Saldaña. Essa última abocanhou o Globo de Ouro Atriz Coadjuvante. O filme ganhou ainda o Globo de Melhor Canção ("El Mal"). Karla e Audiard passaram pelo Brasil esta semana. Resta saber o quanto de dor de cabeça vão trazer para "Ainda Estou Aqui".