Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Alan Rocha: 'Criei blindagem e tenho sonhos'

Alan Rocha, ator e músico, protagoniza musical sobre Martinho da Vila e integra o elenco do premiado 'Ainda Esstou Aqui' | Foto: Andressa Costa/Divulgação

Caminhando por seu bairro, a Penha, para um café com o Correio da Manhã, antes de correr para o Teatro Riachuelo, onde estrela o musical "Martinho, Coração de Rei", Alan Rocha lembra de ter despertado sua casa aos berros, na madrugada do dia 6 de janeiro quando Fernanda Torres, sua colega de cena em "Ainda Estou Aqui", ganhou o Globo de Ouro. É ele quem vive o repórter da revista "Manchete" que entrevista Eunice Paiva (1932-2018), personagem da atriz, no fenômeno de bilheteria de Walter Salles, indicado a três Oscars. É o jornalista interpretado por ele quem pede à futura advogada e ativista - debruçada na luta pelo paradeiro de seu marido, o engenheiro Rubens Paiva, desaparecido após ser levado para depor por agentes da ditadura - para não sorrir ao tirar uma foto. A reação dela é um par de frases: "Vamos sorrir. Sorriam!"

"Dei um grito quando a Fernanda ganhou que até acordou a minha esposa. Era muito forte aquela experiência de ver uma atriz brasileira concorrendo com o top das galáxias, como a Angelina Jolie e a Nicole Kidman, e isso 26 anos depois de a mãe dela, a Fernanda Montenegro, ter concorrido. É muito orgulho", diz Alan, um cavaquinista e ator de 44 anos, graduado em Música pela UFRJ, que hoje arrebata elogios ao interpretar o bardo da Vila Isabel nos palcos do Riachuelo, sob a direção de Miguel Falabella.

Cerca de 4 milhões pagantes já prestigiaram a adaptação que Walter fez do romance "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva, autor do best-seller "Feliz Ano Velho" e filho de Eunice. Esses números só fazem crescer, sobretudo depois que o longa entrou no páreo do Oscar de Melhor Filme, Melhor Atriz (Torres) e Melhor Filme Internacional, contabilizando cerca de US$ 15 milhões na venda de ingressos planeta adentro. Em muitas das sessões nacionais da fita é possível ver o próximo potencial blockbuster estrelado por Alan: "Vitória", que estreia no dia 13 de março. De novo, ele está às voltas com o jornalismo na trama, cujo papel título é vivido por outra Fernanda, a Montenegro. A pedido do Correio, a diva da arte brasileiro definiu Alan em três frases:

"Interpretação magnífica. Personagem realizado de forma memorável. Presença de ator que nos honra", abençoa Fernadona, que construiu sua personagem baseada na história verídica de Joana da Paz, aposentada que desmascarou uma quadrilha de traficantes e policiais corruptos, na Ladeira das Tabajaras, na Zona Sul do Rio, com filmagens em fitas VHS.

Incluída no Serviço de Proteção à Testemunha, Joana foi apelidada de "Vitória" e teve sua identidade mantida em sigilo por 17 anos, até morrer em 2023, após o término das filmagens do longa, dirigido por Andrucha Waddington (genro de Montenegro e marido de Torres). Ele assumiu as filmagens após a morte do amigo e colega Breno Silveira (diretor de "2 Filhos de Francisco"), em 2022. Alan entrou no projeto no papel do jornalista que ajuda a personagem de Fernanda a debelar o tráfico.

É um registro no terreno do drama, distinto do show que ele dá no Riachuelo como uma das versões do compositor e cantor de "Tá Delícia, Tá Gostoso" no recorte trazido por Falabella, a partir da biografia "Martinho da Vila: Reflexos no Espelho", de Helena Theodoro, estudiosa da realidade africana.

"Alan Rocha me causou um profundo impacto em 'A Cor Púrpura', porque eu tinha visto a montagem americana e ele conseguiu trazer uma originalidade tocante à personagem e esse tipo e inteligência cênica sempre me cativa", diz Falabella. "Escrevi especialmente para ele uma participação em 'O Coro', uma série que fiz na Disney e selamos a parceria com esse Martinho, onde ele me conquistou de vez, pois é um ator de múltiplos recursos e técnica apurada".

Segundo Falabella, com Alan, nada é gratuito e sem propósito. "Cada enunciado é pensado e ensaiado à perfeição. Espero ter muitos outros encontros com esse intérprete espetacular que é o Alan", diz o eterno Caco Antibes.

Visto em longas como "Praia Formosa" e "Mussum: O Filmis", Alan também fez novela, no elenco de "Nos Tempos do Imperador", da TV Globo. Tá pra jogo na TV apesar de o cinema não tirar o olho dele. "Tenho uma genuína intenção de um dia trabalhar com o Alan, que tem uma presença forte na tela", diz o roteirista e diretor Marton Olympio, referência nacional nas discussões antirracistas na dramaturgia. "À força do talento, ele está conseguindo romper uma barreira estética que havia na representação negra, antes restrita a pessoas de traços faciais mais finos. Com ele, os outros tipos da população negra - e nós somos muitos - entram em cena".

Na conversa a seguir, o ator explica o simbolismo que cerca sua recente consagração.

Seu rosto está sendo visto por votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood na escolha dos ganhadores do Oscar 2025, graças à consagração de "Ainda Estou Aqui" no exterior. Como recebe o sucesso do filme de Walter Salles?

Alan Rocha: A gente vai apanhando uma notícia boa nova a cada hora sempre que se fala do "Ainda Estou Aqui", que está desbravando espaços inimagináveis, mostrando um momento delicado do Brasil para muita gente, até para quem duvida de como as coisas foram. A repercussão do filme é maravilhosa. O Walter é um diretor muito inteligente. A sensação é de estar participando de um filme histórico. Eu, que nunca parei para ver o Globo de Ouro, fui assistir o prêmio este ano para torcer pela Fernanda Torres. Berrei de emoção.

Neste momento em que o filme faz história, seu prestígio cresce, e se amplia com "Martinho, Coração de Rei" e com o trailer de "Vitória", já nos cinemas. O que essa visibilidade atual traz não só para a sua carreira, mas para a ampliação da presença negra nas telas?

Eu sei o quanto é difícil ser um artista preto no audiovisual, em que a gente ficou muito tempo só vendo as mesmas pessoas no ar. Na vida, já passei por racismo várias vezes, mas tento não me lembrar, para não reabrir essas feridas. Para isso, criei blindagem e tenho sonhos. Venho refletindo muito sobre a forma como eu possa servir de alicerce para as pessoas negras, como um exemplo. Eu virei ator porque gosto de ser outras pessoas, gosto da explosão interna com que a arte me possibilita me vestir do outro. No palco e nas telas, eu saio do meu estado de Alan para viver outras experiências, e fico feliz com isso. Sempre quero mais.

Você a chance de contracenar com as duas Fernandas, a Torres e sua mãe, Montenegro. Que lições tirou de ambas?

Como colegas, as Fernandas impressionam pela generosidade e pela simplicidade. A experiência com elas me deu a sensação de que estou no caminho certo e de que, com o pé no chão, seguirei em frente. O trabalho com a Fernandinha foi de uma diária só, um dia apenas, mas ver uma artista tão grande quanto ela me abre caminho para aprender. Com a Fernandona, eu filmei antes, ali por 2022, já com o Andrucha Waddington. Soube da morte do Breno Silveira, que seria o diretor, e soube que um projeto parou por um tempo, até ser retomado. Quando conheci a Fernanda Montenegro, eu me vi diante de uma rainha, uma deusa e, no encontro, improvisamos. Aprendi que, com ela, atuar tem que ser olho no olho.

Qual é a maior responsabilidade em viver Martinho da Vila?

O peso maior é não transformar sua composição numa caricatura, trazendo humanidade ao retrato que o espetáculo traça dele. Já vi muita gente brincando de fazer o Martinho, imitando seus trejeitos. Eu fui buscar algo que tinha dentro de mim. Martinho tem um disco, chamado "O Pai da Alegria", que traduz muito dele, expondo a genialidade que ele teve de manter viva a bandeira do samba.

Como é que a sua experiência prévia com o samba, como músico, ajudou nesses trabalhos?

A música me trouxe a manha de observar. Quando moleque, eu trabalhei um tempo fazendo pipa. Com o dinheiro que juntei, comprei um cavaquinho. Fui estudar na Villa-Lobos e depois cursei a Faculdade de Música da UFRJ, onde fiz a licenciatura. Um dia, veio um convite de um amigo meu para tocar numa peça no Retiro doa Artistas. Eu me aproximei do teatro ali e, de 2008 para cá, fiz cerca de dez peças. Na sequência veio o cinema, sob a direção do Jeferson De, com quem eu fiz "M8: Quando A Morte Socorre A Vida", "Revolta dos Malês" e "Doutor Gama".

Você tem um projeto infantil chamado "Clube Akorin" no horizonte, também explorando sua vertente de músico. Como é que o samba te alcançou?

Embora eu já escutasse samba por influência do meu pai, sobretudo os discos do Zeca Pagodinho e o álbum "O Show Tem Que Continuar", do Fundo de Quintal, a influência dos grupos de pagode de São Paulo, que começaram a tocar nos anos 1990, foi forte sobre mim. O som do grupo Katinguelê me pegou.

O que te mantém no bairro da Penha, contrariando o fluxo de muitos artistas, mesmo os mais populares, de migrar para a Zona Sul ou a Barra?

Sou da Vila da Penha. Agora moro na Penha. Tenho uma ligação forte com o bairro pela nostalgia de seu lado cultural, que tem uma tradição artística histórica, mas pouco falada. As arenas culturais, a lonas... tudo isso deu muita força na relação do subúrbio com a cultura, furando a bolha de uma rota teatral que se limita ao Centro e à Zona Sul, na maioria das vezes. Andei muito de 355 (ônibus do trajeto Madureira x Tiradentes) e de 350 (linha Irajá x Passeio), passando a Faixa de Gaza (apelido da Rua Leopoldo Bulhões, ligando Manguinhos a Benfica).

O que você tem de trabalho para os próximos meses?

Agora é seguir na torcida pelo Waltinho e esperar a estreia do "Vitória".