No balé da sobrevivência
Ícone da pesquisa coreográfica na dança brasileira, Regina Miranda se firma como cineasta, num estudo sobre as sobreviventes de Auschwitz
Amálgama de música, literatura e teatro, o legado vivo de Regina Miranda para a dança - tanto em performances quanto no aparato teórico com que vem municiando bailarinos há décadas - serve como aríete para suas atuais e recorrentes investigações das veredas do audiovisual. O desejo de entender (e de expandir) a dimensão plástica (e ética) da palavra, na tela grande, levou-a a filmar "Escritas De Resistência: Mulheres em Auschwitz".
Calçado em vivências femininas no Holocausto, o longa-metragem foi rodado pela coreógrafa em parceria com uma de suas atrizes de assinatura, a cineasta e bailarina Patricia Niedermeier, que estrela (com ardor) tal experimento. O corpo é o campo minado onde Regina vem explodindo bombas de invenção, a se destacar os espetáculos "Rua Alice 75, Quartos de Aluguel" e "A Divina Comédia". Ela vira objeto também em sua incursão pelo cinema, em um estudo no qual os verbos "definhar" e "resistir" formam paradoxal fricção.
A saliva de Patricia - num papel plural, que sintetiza várias vidas confinadas em campos de concentração nazistas - rega lembranças de quem passou por humilhações diversas sob o jugo hitlerista, mas teve chance de escrever suas recordações como um convite a um "Basta!" histórico. Imagens de arquivo perpassam a tela e formam uma colcha de retalhos com encenações como a de um monte de tijolos a ser empilhado, num signo para trabalhos forçados. A personagem esconde as missivas que redige costurando-as em mangas ou golas de camisa, na esperança de que sejam lidas como um resgate de luta e como um alerta para que o horror não se repita.
A projeção dessa narrativa no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ), na última sexta-feira, na Mostra do Filme Livre, terminou num misto de urro e ovação. De um lado, veio o engasgo diante da bestialidade da II Guerra Mundial, seguido por um soluço decorrente do risco iminente da volta do fascismo, pós-Bolsonaro. Do outro lado, o que se aplaudia era a radical abordagem de uma artesã autoral do movimento (Regina) e de sua aprendiz (hoje coautora, Patricia) para a sororidade.
Tem coisa boa à beça na seleção da Mostra do Filme Livre (170 títulos), em cartaz até o dia 27 no CCBB, e "Escritas De Resistência: Mulheres em Auschwitz" há de ficar na posteridade (e na saudade) como um de seus faróis, à espera de projeções noutras latitudes. Seu impacto vem de um flerte que Regina estabelece há tempos com as estéticas cinematográficas. Responsável pela coreografia de "Ópera do Malandro" (1986), de Ruy Guerra, ela dirigiu curtas antes, entre eles: "Vislumbres", "Arranjos Afetivos", "Water Clock" e "Reclusa". Foram filmados em paralelo ao trabalho com exercícios performáticos e a escrita de livros como "Corpo-Espaço: Aspectos de uma Geofilosofia do Corpo em Movimento".
"O amor pela palavra e pelo gesto me fizeram, ao longo do tempo, ganhar um território bem amplo de possibilidades de deslocamentos. Um território de maior ênfase no gesto ou na palavra, pontuado de momentos nos quais se encontram. Nesse sentido, a minha relação não é muito diferente entre o palco e a tela. Onde há mais diferença é quando eu trabalho com instalações", explica Regina, que também é dramaturga, e escreveu peças como "Manuscritos de Leonardo", encenada por ela em 2013.
Diretora do recente "Ensaios Sobre Yves" (2024), Patricia Niedermeier destaca a natureza transgressora de sua correalizadora: "Regina Miranda é uma grande artista, corajosa e livre. Uma artista de imensa sensibilidade, cultura e inteligência. Cultiva o oficio da arte como desejo de vida, onde todos os dias, de alguma forma, a criação tem espaço fundamental. É uma mulher brilhante sempre inspirando e movendo corpos almas e corações".
Na entrevista a seguir, Regina explica como ela e Patricia fizeram de "Escritas De Resistência: Mulheres em Auschwitz" um estudo sobre estratégias faladas (e doídas) de sobrevivência.