De Pinochet às divas da resistência

Estreia de 'Maria Callas' amplifica a força da fase biográfica de obra de Pablo Larraín, diretor que repaginou a força audiovisual do Chile no planisfério cinéfilo com críticas à era Pinochet

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Corrreio da Manhã

A atriz californiana Angelina Jolie recebe instruções do diretor chileno Pablo Larraín no set de 'Maria'

Antes de filmar calvários de ícones femininos do século XX, como a ave canora da ópera Maria Callas (1923-1977), o chileno Pablo Larraín conversou com o Correio da Manhã nos corredores da festa do troféu Platino (então, em 2016, a sede foi o Uruguai), e fez uma prospecção sobre o cinema que viria a fazer dali para frente. O biopic da cantora lírica que ele lança nesta quinta-feira (16) no Brasil não estava em seus planos ainda, só "Jackie", em que escalou Natalie Portman como Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), mas o realizador já refletia sobre um projeto estético:

"Eu faço política na tela quando escancaro feridas", disse o cineasta, nascido em Santiago, há 48 anos, enquanto brigava por láureas para "O Clube", que lhe rendeu o Grande Prêmio do Júri da Berlinale, ao falar de delitos (sexuais, sobretudo) de sacerdotes católicos.

Envolvido com o projeto "The True American", sobre os bastidores do 11 de Setembro, Larraín ganhou notoriedade a partir de 2008, quando tomou o Festival de Cannes de assalto com o suspense "Tony Manero". Narrava ali a história de um serial killer obcecado pelo herói marxista bailarino que fez de John Travolta um ídolo das telas, em 1977, à frente de "Embalos de Sábado À Noite". Antes, ele mobilizou salas no Chile com "Fuga" (2006), gestado sob a grife Fabula, nome da produtora que fundou em 2003 com seu irmão, Juan de Dios.

Era um tempo em que a América Latina passava por uma revisão de sua forma de narrar, que começou em 1998, depois do Urso de Ouro dado a "Central do Brasil", de Walter Salles. Na sequência, a Argentina (com Lucrecia Martel, Pablo Trapero e Daniel Burman) estourou mundialmente, em especial após a consagração de "O Filho da Noiva" (2011), de Juan José Campanella. O México veio nessa mesma esteira, com os "Amores Perros" (2000), de Alejandro González Iñárritu.

A boa acolhida global a "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles, com quatro indicações ao Oscar, foi essencial para um movimento apelidado de Nouvelle Vague, que atraiu holofotes para a produção chilena em especial pelos esforços de Larraín.

Com a saga de Manero, ele arrebatou a crítica por sua abordagem da dissonância psiquiátrica de seu protagonista, escrito e interpretado pelo ator Alfredo Castro, que foi parceiro do cineasta em outros títulos também. No fim dos anos 2000, aquela trama chamou mais atenção ainda pela crônica que construiu das feridas governamentais do Chile após a interrupção da era Salvador Allende, em 1973. Esse Chile traumatizado era associado (e aterrorizado) pela figura ditatorial de Augusto Pinochet (1915-2006), estadista de farda que foi tema de vários enredos de Larraín, entre eles o impecável "Post Mortem" (2010), thriller que o aproximou do Festival de Veneza, após uma indicação ao Leão de Ouro. Esteve lá, no Lido, no ano passado com "Maria Callas". O turbilhão sentimental da cantora, estrelado por uma Angelina Jolie em interpretação devastadora, voltou a lhe render resenhas elogiosas.

Só não foram mais intensas do que os elogios conquistados por ele na Croisette, via Quinzena de Cineastas, em 2012, quando lançou um de seus mais importantes sucessos: "No" (2012), com o mexicano Gael García Bernal. Ao reviver o plebiscito popular que votou pelo fim da gestão Pinochet, sob o (audacioso) uso da linguagem das câmeras de VHS da década de 1980, Larraín recebeu uma indicação ao Oscar e renovou as cartilhas da ficção política na América Latina. Com ele, a indústria cinematográfica chilena recuperou o diálogo popular com plateias internacionais que se perdeu ao longo da década 1990, mas que foi forte e firme nos primeiros anos da filmografia de seu conterrâneo Miguel Littin ("O Recurso do Método" e "A Viúva de Montiel"), entre 1969 e 1986.

Uma vez mais pelas trilhas da Quinzena de Cannes, Larraín firma um novo contrato com Gael, para narrar a vida de um pilar da poesia em "Neruda" (2016). Ali, dá a arrancada em seus ensaios biográficos de ícones femininos com o já citado "Jackie", seguido por "Spencer" (2021), com Kristen Stewart (no papel de Lady Di); e agora "Maria Callas". Em meio a esses títulos, arriscou-se por uma experimentação sobre o desejo ("Ema") e por um regresso ao fantasma de Pinochet ("El Conde", hoje na Netflix), a reatar laços com seu tema de fetiche. Tema que fez dele uma das vozes mais contundentes da indústria de DNA hispano-americano. Suas incursões pela Europa são igualmente sólidas.

Angelina Jolie entra em seu "Maria Callas" rodeada por uma dupla de colegas italianos em desempenhos colossais: Alba Rohrwacher e Pierfrancesco Favino. Eles vivem Bruna e Ferruccio, um par de empregados que acompanha o definhar de La Callas no ocaso de sua carreira, na década de 1970, após a perda de sua potência vocal. O que se vê é a cartografia de uma implosão emotiva.