Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Liam Neeson no calibre Charles Bronson

Liam Neeson em 'Último Alvo'. Astro vive um justiceiro com rugas no rosto | Foto: Divulgação

Com dois filmes prontos para lançar daqui até dezembro ("Ice Road 2: Road to the Sky" e "Cold Storage"), o irlandês William John "Liam" Neeson está finalizando o que pode ser (mais) uma virada em sua bem-sucedida carreira: "The Naked Gun", uma nova versão da franquia "Corra Que a Polícia Vem Aí" (1988-1994). Ao viver Frank Drebin Jr, o herdeiro do abilolado tira vivido por Leslie Nielsen (1926-2010), o astro de "A Lista de Schindler" (1993) pode se reinventar como comediante da mesma forma que se recriou, no fim dos anos 2000, como protagonista de longas-metragens de pancadaria, criando uma persona digna de Charles Bronson.

Ganhou essa persona em 2009, com o fenômeno comercial da franquia "Busca Implacável" ("Taken") e manteve-se firme nela, brilhando em blockbusters como "Desconhecido" (2011) e "Na Mira Do Perigo" (2021). Nesta quinta-feira, estreia uma nova investida dele nesse campo minado: "Último Alvo" ("Absolution"). A direção é do norueguês Hans Petter Moland. Ele é um dos medalhões autorais de sua pátria, que ganhou o Urso de Ouro, no sábado passado, com "Dreams (Sex Love)", de Dag Johan Haugerud. Hans trabalhou com Liam antes, em "Vingança a Sangue-Frio" (2019), e encontrou nele um porta-voz de seu olhar crepuscular.

Premiado por longas como "Um Homem Um Tanto Gentil" (2010) e "Uma Nova Vida" (2004), o diretor fez da excelência visual (nas raias do deslumbre) o seu norte de trabalho. Cada quadro de seus filmes carrega uma potência plástica rebuscada, às vezes até excessiva, mas que demonstra reflexão formal, num desapego às convenções da trama, no desejo de libertar as imagens pelas fraturas na psiquê de seus personagens. Um flerte de Hans com a cartilha do thriller, "Último Alvo" enxerta humanismo nas dinâmicas da violência.

Mais patrulhado de todos os gêneros, sobretudo por correntes ideológicas que confundem transcendência estética com sociologia, o cinema de ação viu seu panteão de estrelas e os seus códigos narrativos serem esvaziado pelo politicamente correto ao longo dos anos 1990 para cá, substituindo o que nele havia de épico pelo patético da comédia, rejuvenescendo (ao nível da infantilização) seus protagonistas. Quando morreu o último dos heróis anciões do filão, o já citado Bronson, em 2003, acreditou-se que a perspectiva de um vigilantismo maduro, de cabelos grisalhos - e, por isso mesmo, aberto a autocríticas - estaria extinto para sempre. Só sobreviveria das iniciativas de Sylvester Stallone - o midas dessa seara - em juntar os mestres aposentados do passado na franquia "Os Mercenários" (2010-2023). Clint Eastwood, que era também um vetusto herói, pendeu mais para a direção. Will Smith, Vin Diesel, Charlize Theron e The Rock conjugaram com maestria os códigos do thriller, porém sempre seguindo uma linha mais próxima da aventura e do family film do que das convenções OMACs (One Man Army Combat), ou seja, "exércitos de uma pessoa só" dos anos 1970 e 80.

Nessa convenção, só dois astros brilharam, curiosamente ambos dublados pelo mesmo e talentoso ator - o paulista Armando Tirabischi - no Brasil: Jason Statham e Neeson. O primeiro enveredou mais por uma linha B, de filmes graficamente explícitos no sangue e na quebra de ossos, à moda gore, numa reinvenção da fórmula do guerreiro imparável, como os ronins (samurais sem mestre) de Akira Kurosawa. Neeson, não.

Filmes de eficiência comercial (e artística) inquestionável, como "Último Alvo", comprovam que o ator de 72 anos não só assumiu o posto de Bronson - de ser o justiceiro com rugas no rosto - como humanizou o arquétipo do vigilante experiente, trazendo tridimensionalidade a papéis antes representados de modo raso, resumidos a suas jornadas. Arrastou seu conhecimento teatral, sobretudo de Tchekov, para cada empreitada dessas, construindo heróis alquebrados, penitentes, com dilemas. Não precisou deixar os convites de diretores de grife, como Martin Scorsese (com quem trabalhou em "Gangues de Nova York" e "Silêncio"), para isso.

Em "Último Alvo", Neeson interpreta Murtagh, um criminoso aposentado que, ao descobrir uma doença degenerativa, decide deixar o mundo do crime para tentar reconstruir sua vida e viver um amor. Deixar o submundo não será tão simples: antigos aliados e novos inimigos não estão dispostos a deixá-lo sair impune. Em uma corrida contra o tempo, Murtagh precisará encarar fantasmas do passado e reatar laços com a filha a quem decepcionou várias vezes. Um neto vai encher seu caminho de esperança e de sentido. Amar (de novo), contudo, exigirá desse antigo assassino uma nova disposição para a vigília. Com a dublagem infalível de Tiraboschi, Liam esculpe esse personagem com um misto de fragilidades e asperezas.

Dá provas de um carisma que trouxe ao cinema de ação um sopro extra de inteligência.