Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Marighella' do Brasil

Seu Jorge tem uma atuação visceral no papel de Carlos Marighella | Foto: O2 Filmes/Divulgação

Falta uma semana para a estreia (na Apple TV) da série "Ladrões de Drogas", novo projeto do baiano Wagner Moura em terras estrangeiras, e, em meio à espera por essa produção com a grife de sir Ridley Scott na produção, um dos trabalhos de maior prestígio do ator volta a gerar cliques no streaming, a reboque do clima de louvor ao cinema brasileiro impulsionado pelo Oscar dado a "Ainda Estou Aqui". Como o sucesso de bilheteria de Walter Salles escancarou a brutalidade da ditadura militar para o mundo, filmes associados ao período em que o país viveu sob o controle dos militares têm atraído novos olhares e gerado debate como é o caso de "Marighella", que marcou a estreia de Wagner como realizador, há seis anos.

A produção está no Globoplay e hoje angaria novos espectadores na base de assinantes da plataforma. O astro tem mais um título ligado aos anos de chumbo por vir, quiçá em maio, no Festival de Cannes: "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho. Até lá, a voz do guerrilheiro e poeta Carlos Marighella (1911-1969) ecoa noutras latitudes.

Esse eco nos dá aula de História. Quando "O País de São Saruê" (1971), obra-prima das narrativas documentais, foi vetado pela Censura, sob às ordens do regime golpista instaurado à força em 1964, ele recebeu um rótulo depreciativo: "Este filme fere a dignidade nacional". Essa designação, com o passar do tempo, transformou-se em um elogio, ao julgar quem o emitiu, no caso, uma força fardada que permaneceu 21 anos no Poder, sem pedir licença à nossa democracia.

Essa designação, com o passar do tempo, transformou-se em um elogio, ao julgar quem o emitiu, no caso, uma força fardada que permaneceu 21 anos no Poder, sem pedir licença à nossa democracia. Essa mesma força ganha uma abordagem crítica de "Marighella". Para alguns, ele também "fere" aquilo que se pressupõe "digno" por parte de uma ala avessa à arte da escuta. Continua na página seguinte

 

Seu Jorge: 'Esse filme tem a capacidade de fazer as pessoas sentirem a História e se aproximarem dela'

Seu Jorge recebendo instruções de Wagner Moura, que fez sua estreia como diretor | Foto: O2 Filmes/Divulgação

O desempenho de Seu Jorge no papel título contagiou a plateia por onde a fita passou, em especial no momento de uma entrevista a um jornalista francês que, ao interpelá-lo, para saber se ele é maoísta, leninista ou trotskista, recebe como resposta: "Sou brasileiro". Sua carreira comercial custou a acontecer.

Ele teve sua primeira projeção na Berlinale de 2019, em solo alemão, e só pode ser lançado comercialmente aqui dois anos depois, durante a pandemia da covid-19. Mesmo assim, quando saiu, gerou inchaço nas salas, com sessões esgotadas.

"Esse filme tem a capacidade de fazer as pessoas sentirem a História e se aproximarem dela, cada um à sua maneira", disse Seu Jorge ao Correio da Manhã na estreia.

Famoso por avaliar filmes a partir de percentuais numéricos de aprovação, o site Rotten Tomatoes registrou 88% de aprovação internacional ao longa de Wagner, que impressionou o Festival de Berlim pela precisão de suas sequências de ação, repletas de adrenalina, num grau que lembra a das aventuras de Vin Diesel. Na Europa, a partir de sua passagem por telas germânicas, "Marighella" foi recebido com cisão de gostos, mas foi respeitado por todos os fronts, pela maturidade com que um dos atores mais populares do Brasil - inclusive em âmbito mundial, tendo sido indicado ao Globo de Ouro por "Narcos" - passa ao posto de realizador, numa revisão de nosso passado, no fim dos anos 1960. "Não é apenas uma cinebiografia. É uma provocação", escreveu no "The New York Times" a crítica Devika Girish, que comparou o estilo de filmagem de Moura ao clássico político "A Batalha de Argel", Leão de Ouro de 1966.

Estandarte de controvérsia - pela coragem de apostar na dialética ao apontar a luz e as trevas da direita e da esquerda - e de virtuosismo, por seu ritmo narrativo digno dos bons thrillers de Costa-Gavras (como "Z" e "Estado de sítio"), "Marighella" funcionou (extraoficialmente) para a reta final do festival alemão de seis anos atrás como se fosse um filme de encerramento. Aliás, um encerramento dos mais explosivos, para uma maratona de tônus político. Passou fora de competição pelo Urso de Ouro, mas agitou ânimos. Ainda teve direito a uma atuação devastadora de Bruno Gagliasso (digno de aplausos e elogios em muitas línguas) como Lúcio, o delegado que caça o guerrilheiro.

Na trama, escrita pelo ator e por Felipe Braga, o personagem de Seu Jorge confronta a esquerda com uma discussão sobre a importância estratégica da luta armada. Acaba expulso do partido em que milita por sua aposta em um contra-ataque com tiros e bombas. Seus feitos levam Lúcio (Gagliasso, numa atuação enraivecida, contagiante) a ampliar o cerco, vigiando o filho de Marighella, Carlinhos, um menino. Essa relação pai e filho aumenta o tônus de comoção que a narrativa causa, sensibilizando olhares sem se desviar de suas reflexões sobre opressão.

Para o eterno Capitão Nascimento, os elogios a seus astros e a sua técnica de narrar simboliza mais do que uma consagração artística pessoal. "Dirigi as cenas de ação desse filme como se fosse um thriller dos irmãos Dardenne", disse Wagner ao CORREIO, à época de Berlim, ao comentar a dose farta de adrenalina do longa, referindo-se aos cineastas belgas conhecidos por seu realismo seco, em filmes cultuados como "Rosetta" (Palma de Ouro de 1999).

Em 2024, Wagner estrelou o blockbuster "Guerra Civil", que pode ser visto hoje na MAX.