De olho numa vaga na disputa pela Palma de Ouro de Cannes, em competição de 13 a 24 de maio, "Une Affaire", novo longa-metragem de Arnaud Desplechin, vai sendo finalizado a fim de levar interpretações de Charlotte Rampling e François Civil, estruturadas para arrancar choro, ao Palais des Festivals. É a saga de um virtuoso pianista que embarca num amor improvável. A improbabilidade afetiva e a incapacidade de aceitação são os assuntos que tornam Desplechin um diretor autor (ou seja, com assinatura estética) no coletivo de realizadores franceses hoje em atividade.
"O que existe de mais francês na França cinéfila é o fato de amarmos o cinema americano", ironizou Desplechin num papo com o Correio da Manhã quando finalizava o ensaio (meio documental meio ficcional) "Loucos Por Cinema!" ("Spectateurs!").
Esse estudo sobre a cultura das salas de exibição estreia no Brasil neste fim de semana, dando espaço para Desplechin ser passional ao extremo em suas saudades. "Foi com Hollywood que aprendemos a amar o cinema sobre todas as coisas e criar o nosso modo de rever o que eles mostram em seus filmes mais autorais. Não me vejo como patriota, não faço da chamada 'francesidade' uma bandeira, adoro heróis e gosto de chorar", confessa o artesão por trás de "Os Fantasmas de Ismael", atração de abertura de Cannes em 2017. "Gosto do trânsito que o drama faz dentro de nós liberando questões engasgadas. Faço cinema para espantar o ódio que existe no mundo e reina na sociedade".
Em 1991, "La Vie Des Morts" marcou a estreia de Desplechin, então um jovem aspirante a artista, vindo de Roubaix, onde nasceu, há 64 anos. Desde então, construiu um patrimônio audiovisual de histórias sobre afetos consagrado com sete indicações à Palma de Ouro, uma láurea de melhor documentário em Veneza (dada a "L'Aimée", em 2007) e o Prêmio SACD da Quinzena de Cannes, confiado em à sua obra-prima, "Três Lembranças Da Minha Juventude" (2015). Levou "Loucos Por Cinema!" à Croisette, no ano passado, e bateu ponto também no Festival de San Sebastián, onde o longa foi ovacionado.
"Tentei construir algo que conversasse com 'Roma', de Fellini, ou seja, uma referência de memória de vida em complexos exibidores", disse Desplechin.
Para guiar essa narrativa de sanha felliniana, ainda que sem os excessos lúdicos do mestre italiano, Desplechin evoca seu alter ego, Paul Dédalus, personagem que aparece em vários de seus filmes, de muitas formas distintas. Aqui, ele entra em cena em idades diversas, de guri a adulto, vivido por vários atores, entre eles Milo Machado-Graner (o garoto de "Anatomia de uma Queda"). A diva François Lebrun vive uma avó dedicada, que acompanha a travessia de Dédalus por écrans iluminados, e Mathieu Amalric, seu astro fetiche (com quem rodou os magistrais "Reis e Rainha" e "Terapia Intensiva"), interpreta um cineasta em tempos de catarse. O próprio Desplechin põe sua voz pra jogo, numa forma de se abrir para o público.
"Cada filme que faço carrega um ethos particular. Talvez existam traços entre eles, mas não é uma busca determinada previamente. Há apenas uma predileção minha pelo tema da segunda chance. Gosto de pessoas que têm a chance de recomeçar", disse Desplechin ao Correio no fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, em Paris.
Ao filmar, ele é sempre palavroso, faz evasões ultrarromânticas no tempo, mas é cauteloso para jamais elevar o nível de sacarose de suas tramas ao excesso. Seu estilo é classificável na ótica brasileira como "melodrama mauricinho".
"Talvez eu tenha o meu jeito particular de filmar, mas o que sei conscientemente dele é o fato de ver cada ator ou atriz como uma incógnita a ser desbravada, pois cada estrela me abre uma pergunta. Por exemplo, Marion Cotillard, com quem filmei 'Briga Entre Irmãos' há pouco tempo, tem uma capacidade única de humanizar tragédias. Essa singularidade dela, as singularidades das minhas estrelas, ajudam-me a depurar a ideia de sutileza, para dar espaço à angústia".