Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Alguma coisa François Ozon deve estar aprontando. Não há indícios de novos projetos do diretor parisiense responsável por sucessos como "8 Mulheres" (2002) no maior banco de dados do cinema, o Internet Movie Database (IMDB), o que é incomum, pois todo ano ele finaliza um longa e deixa já um projeto apontado para rodar nos meses seguintes. A ausência de informações sobre os próximos passos desse campeão europeu de bilheteria bagunça os prognósticos do mercado exibidor do Velho Mundo para 2025.
No Brasil, entretanto, as redes de multiplex com perfil arthoue (o chamado "cinema de arte"), tipo o Estação e o Cinesystem, já estimam cifras altas para a estreia do longa-metragem mais recente do cineasta, "Quando Chega o Outono" ("Quand Vient L'Automne"). Quinta-feira que vem (27/3), entra em cartaz esse drama sobre finitude e tolerância que rendeu a Ozon o prêmio de Melhor Roteiro no 72° Festival de San Sebastián, em setembro. Na França, a produção vendeu 674 mil ingressos.
"A morte é parte da vida e, ao pensar nela, eu fico refletindo sobre o quanto precisamos usar bem o tempo que temos. Eu só não imaginava que estava fazendo meu filme mais mortífero, pois pelo menos três pessoas perecem aqui, numa história que não fala de violência bruta, mas tem seus mistérios", explicou Ozon ao CORREIO DA MANHÃ em San Sebastián. "Meu empenho aqui era criar personagens que pudesse criar conexão com o público sobretudo por carregarem dois lados em si. Parecem agradáveis, no esforço de fazer o bem, mas erram, são falhos".
Titãs do melodrama (Fassbinder, Almodóvar, Douglas Sirk) fazem parte da dieta simbólica que formou o olhar de Ozon, mas as referências que leva para "Quando Chega o Outono" passa ao largo do folhetim. "Sou um diretor cinéfilo, mas o pavimento de onde eu parti aqui foi Simenon e sua literatura, pois a prosa policial dele investiga o subterrâneo. Percebi isso com (o diretor) Claude Chabrol, que foi quem melhor adaptou Simenon para as telas", explica Ozon, que usa a região da Borgonha como cenário, deixando a ambientação urbana da capital francesa de lado. "Num momento da História em que as artes parecem obcecadas com a juventude, eu tentei fazer um filme sobre um outro ritmo de vida num ambiente de natureza, usando signos da terra como um caminho para fazer uma reflexão sobre o tempo e debater a solidariedade".
Repleto de reviravoltas investigativas, "Quando Chega o Outono" é um Ozon crepuscular, com foco na ferrugem sobre os corpos, de olhos voltados para a velhice. O júri de San Sebastián, presidido pela cineasta catalã Jaione Camborda, encantou-se pela maestria com que o diretor domina convenções de dramaturgia ao se arriscar a fazer suspense onde se esperava um drama geracional. O desempenho tocante de sua protagonista, Hélène Vincent, serve a ele como um aríete. Ela interpreta Michelle, uma prostituta aposentada que, radicada numa vila, sonha em tomar conta do neto, mas lida com a antipática atitude de sua filha, Valérie (Ludivine Sagnier). A moça foi criada com muito amor, mas repudia sua mãe.
"Família é sempre um tema fascinante", diz Ozon.
Num jantar nada agradável naquele cantinho do Céu na Borgonha, Valérie se intoxica com cogumelos e para no hospital, numa crise grave, o que bagunça a relação das duas. Quando um ex-presidiário, Vincent (papel de Pierre Lottin, em brilhante atuação), passa a conviver com Michelle, a rotina daquela ex-garota de programa se complica ainda mais.
"Eu tinha uma tia toda fofa, daquelas que se encaixam no arquétipo da parente amável, toda boazinha, que, um dia, preparou um jantar regado a champignons para a família e todo mundo passou mal depois de comer. Quando soube desse caso, eu pensei: 'será que a tia queria envenenar a gente?'. Meu filme partiu daí, e, tendo a parceria com Hélène, uma mulher de 80 e poucos anos que age como se fosse uma garota, eu tentei discutir os espaços de ternura possíveis quando a gente envelhece. Não tenho medo de envelhecer, não nesse lugar em que o mundo associa 'ficar velho' com 'ficar só'. Não temo a idade nesse âmbito porque eu percebo a solidão nos processos mais corriqueiros da vida", diz Ozon, comemorando ainda a premiação de Lottin, em San Sebastián, com a láurea de Melhor Coadjuvante.
Vincent, o ex-detento interpretado por ele, é capaz de abrir brechas cômicas na trama com seus feitos inusitados. "Na forma como eu estruturo meus filmes, um sorriso de canto de boca da plateia conta mais do que uma gargalhada", diz Ozon.
Desde a sua estreia (em dose dupla), em 1988, com "Photo de Familie" e "Le Doigts Dans Le Vetre", Ozon realizou 16 curtas e uma média-metragem de 52 minutos ("Regarde La Mer"), antes de lançar seu primeiro longa: "Sitcom" (1998). Dali em diante, começou uma sucessão de títulos que foi coroada com o Grande Prémio do Júri da Berlinale, em 2019, por "Graças a Deus" ("Grâce à Dieu"), sobre delitos da Igreja Católica. No geral, ele segue uma linha pautada por investigações convulsivas sobre a paixão (como "Jovem e Bela", "Peter von Kant" e "Dentro da Casa", que lhe valeu a Concha de Ouro de San Sebastián, em 2012) ou caminha por comédias agudas sobre desencaixes comportamentais, como "Potiche - Esposa Troféu" (2010) ou "O Crime é Meu" (2023).
"Eu não estou preocupado em ganhar o Oscar", desabafa Ozon. "Minha preocupação é dar ao público uma experiência inusitada a cada filme".