Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Michael Haneke no fio da navalha

Um dos achados do Festival de Cannes de 2001, 'A Professora de Piano', de Michael Haneke, ganha sessão neste fim de semana no Estação Net Botafogo | Foto: Divulgação

Teste para nervos vulneráveis a condições anormais de temperatura e pressão afetivas, "A Professora de Piano" ("La Pianiste") foi um dos achados do Festival de Cannes de 2001 e volta ao circuito exibidor neste fim de semana, com projeção às 23h59, no Estação NET Botafogo. A sessão integra a seleção semanal de cults à meia-noite da tradicional sala da R. Voluntários da Pátria. Há 24 anos, a Croisette contemplou esse longa-metragem com uma dupla láurea de Melhor Interpretação, dado à diva Isabelle Huppert e a Benoît Magimel. Coube ainda o Grande Prêmio do Júri cannoise para seu diretor, o austríaco Michael Haneke, hoje aposentado (ao que parece), aos 83 anos.

A chance de rever a essa produção na telona alerta para a ausência de novos títulos desse aclamado cineasta, agraciado duas vezes com a Palma de Ouro, por "A Fita Branca", em 2009, e por "Amor", em 2012 - que lhe valeu ainda um Oscar. Desde 2017, ele não lança nada, sendo evocado mais por exibições especiais e pelas plataformas digitais. Há uma nova leva de produções dele no streaming brasileiro.

No Cindie.Com, há como assistir boas expressões autorais dele, como "Violência Gratuita" (1997) e "O Tempo do Lobo" (2003). Já no Reserva Imovision, rolam "71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso" (1994), "Código Desconhecido" (2000) e "Caché" (2005). Suas duas Palmas podem ser encontradas na Amazon Prime, onde também se aluga seu último filme (até agora): "Happy End". Essa produção de US$ 13 milhões estreou em outubro de 2017 na França e vendeu cerca de 50 mil ingressos já na largada, com um número pequeno de cópias.

Trata-se de uma cartografia das patologias europeias tem foco numa aristocrática família francesa. Jean-Louis Trintignant (de cults como "Z") brilhou no papel de Georges, o patriarca do clã dos Laurent, que tem (a já citada) Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz entre os parentes.

"Michael é tão rígido que, numa cena de 'Amor', em que contraceno com um pombo, tive a sensação de que ele pretendia dirigir o pássaro", disse Trintignant ao Correio da Manhã, em Cannes, quando "Happy End" disputou a Palma dourada.

Numa direção cirúrgica, pautada por um clima de tensão econômica crescente, Haneke cria em "Happy End" a crônica da atomização da burguesia no Velho Mundo, a partir da erosão afetiva e financeira dos Laurent, entre tragédias e processos judiciais, ligados à presença ilegal de estrangeiros no Velho Mundo. Já no início, o cineasta monta uma sequência sombria: uma menina filma num i-Phone um jogo cruel com um hamster alimentado com comprimidos de dormir. É uma metáfora para a opressão dos pobres. E essa tensão se processo em meio ao casamento da personagem de Isabelle com um empresário inglês, vivido por Toby Jones.

"Falam muito de que eu carrego uma mirada pessimista. Não concordo com a ideia de que eu seja descrente na humanidade, mas existe um olhar de total ingenuidade em relação às tensões econômicas à nossa volta. Pessoas são tratadas como coisas e como negócios. A pobreza gera ódio sob a total inadimplência do Estado em relação aos afetos alheios", disse Haneke em Cannes. "Famílias como o clã Laurent estão por aí ao nosso lado exercendo controles. O suspense que eu gero ao falar deles se baseia na observação".

É possível ver "Happy End" na Apple TV também. "Temos informação demais no mundo contemporâneo, com muitas perspectivas e opiniões diversas que parecem postulados de verdade e isso nubla nosso senso do Real. Este filme é um esforço de estudar as sequelas do excesso", disse Haneke, quando o longa entrou em cartaz em Paris.

Acerca de "A Professora de Piano", que vai agitar o Estação nesta sexta, o longa também está no Reserva Imovision. Apesar disso, a chance de vê-lo em um cinemão é preciosa. Na trama, a rígida Erika (La Huppert) ensina piano no Conservatório de Viena. Solteirona, ela compartilha a mesma cama com sua mãe possessiva (papel de Annie Girardot), num amor filial-maternal que rapidamente se transforma em violência. Às vezes, Erika foge para assistir a filmes pornográficos ou satisfazer seus desejos voyeurísticos. Sempre que precisa tocar em seu sexo, ela o faz para se mutilar, sem dó. Rejeita todo sentimentalismo até o dia em que um jovem, Walter Klemmer (interpretado por Benît) mexe com seus instintos e bagunça suas certezas. Aí é Haneke na veia... no fio da navalha.