Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Estética desindustrial 'made in' Taiwan

'Abiding Nowhere', o exercício autoral mais recente de Tsai Min-Liang, exibido na Berlinale em 2024 | Foto: Divulgação

 

Envolvido em projetos de um radicalismo experimental digno da videoarte, porém concebidos para salas de projeção, como "Abiding Nowhere", o malaio radicado em Taiwan Tsai Ming-liang hoje não se aventura mais por narrativas de jornada como "Rebeldes Do Deus Neon" ("Qing Shao Nian Nuo Zha", 1992), a ser exibida pelo Estação Net Botafogo nesta segunda, às 21h. Foi a partir dessa trama sobre dilemas de juventude que ele estreou no longa-metragem. Passou por festivais em Berlim, Toronto, Tóquio, Turim e Taipei, terra que serve de base de operações para sua vida e sua arte.

O que faz hoje, devotado a pesquisas sobre realidade virtual, não põe na lixeira o que fez no início de uma aclamada carreira, coroada mundialmente com 65 troféus, entre eles o Leopardo Honorário do Festival de Locarno (na Suíça). Tsai respeita sua caminhada, em especial quando novíssimas plateias tentam entender o caminho que ele escolheu para, em suas próprias palavras, "conseguir se perder".

"Não sou mais jovem, percebo ser incapaz de ter a força para rodar certos planos que fazia no passado, mas sinto que meu interesse hoje se concentra em gestos que desindustrializem o cinema, pensando sempre na tela grande", disse Tsai ao Correio da Manhã, em Locarno, meses antes de finalizar "Abidinhg Nowhere", lançado na Berlinale.

Depois de seu "Vive L'Amour" (1994) conquistar o Leão de Ouro de Veneza, o realizador de 67 anos encontrou prestígio definitivo no planisfério cinéfilo, sem nunca arredar o pé da invenção. A consagração de seu "O Buraco" em Cannes, de onde saiu com Prêmio da Crítica em 1998, foi um passo adiante no estabelecimento de uma carreira sempre interessada em pensar cidades e suas solidões.

"Eu faço filmes silenciosos porque os barulhos da cidade nos servem como uma trilha sonora", disse Tsai ao Correio na Berlinale de 2020, ao ganhar o troféu Queer Teddy por "Days".

Essa dimensão silenciosa que persegue hoje já se faz notar em "Rebeldes Do Deus Neon", que integra o cardápio de clássicos da segunda metade do século XX sempre buscados pelo Estação para as sessões de segunda. Em sua trama, o estudante Hsiao Kang (papel de Lee Kang-Sheng, o muso do diretor) vive com seus pais em Taipei. Decidido a deixar a escola para vaguear pela cidade com sua scooter, ele acaba encontrando dois rapazes que haviam quebrado o retrovisor do carro do seu pai, e resolve segui-los. Solto no grande centro, cheio de casas de jogos eletrônicos, luzes e pessoas vagando num ambiente sombrio, Hsiao Kang traça um caminho que demonstra, de forma majestosa, o vazio da modernidade. Esse vazio é o eixo autoral de Tsai no cinema. "Falo de homens em instâncias distintas da linguagem, que não falam a mesma língua, mas se encontram", explicou o cineasta, em Locarno.

Há um ano, ele tem rodado eventos acompanhando a exibição da cópia nova de "O Sabor da Melancia" (2005), que comemora duas décadas de sua estreia ainda pontuado de ousadia. É um ensaio sobre corpo, sexo e querer, que brinca com a tradição do musical asiático. "Abiding Nowhere" vai por uma margem oposta. Nele, Kang-Sheng passa todo o tempo d a trafegar por Washington, a partir de um mergulho num rio, em área silvestre, onde imerge, emerge e flutua. Sua cabeça raspada e sua túnica rubra humilde lhe dão um perfil de monge. Sem palavras, atento ao esplendor da Natureza numa comunhão quase espiritual com ela, o sujeito entra na estação de trens, adentra uma igreja e passeia por um museu. Outro estranho (vivido por Anong Houngheuangsy) também se desloca pela cidade. Não sabemos se ele está ou não a seguir o caminhante, mas traça seu próprio trajeto, numa caminhada imbuída de um senso de autodescoberta.

"A partir de 2017, eu passei a me expressar modelos de captação de imagens que não me permitem fazer closes e outras conjugações dos verbos cinematográficos clássicos, mas me habilita a fazer descobertas no terreno da textura", disse Tsai. "É um futuro possível. Para chegar a ele, preciso preservar o passado. Preciso manter meus filmes de ontem vivos".