Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Vladimir Carvalho, presente!

Vladimir recebe homenagem do 'É Tudo Verdade', que em seu cartaz estampou foto do documentarista no set de 'Cabra Marcado pra Morrer', de Eduardo Coutinho, de quem foi assistente | Foto: Maira Moraes/Divulgação

De luto pela perda de Vladimir Carvalho (1935-2024), que partiu em 24 outubro, sem pedir licença à saudade da gente, o É Tudo Verdade - o maior festival de documentários da América Latina - abre uma seção dedicada ao mestre paraibano da não ficção em sua edição n°30, que zarpa nas telas a partir desta quinta-feira. Rola no RJ e em SP. A abertura em terras cariocas é só para convidados, com sessão de "Viva Marília", de Zelito Viana, às 20h30, no Estação Net Botafogo. O pacotão Vladimir começa por aqui já na sexta, com "O Engenho de Zé Lins", filme ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília de 2006. Tem exibição dele às 16h, no Estação NET Rio.

Imortalizado com a escalação de seu nome para (re)batizar uma sala de projeção de vital importância no Distrito Federal e com um painel no circuito Estação, Vladimir estampa o cartaz do É Tudo Verdade deste ano. Usa-se uma foto de sua juventude, no início dos anos 1960, nas filmagens de "Cabra Marcado Para Morrer", de Eduardo Coutinho (1933-2014). Ele integrou a equipe do mítico .doc interrompido por ações do governo (o militar) em 1964 e só retomado duas décadas depois. Continua na página seguinte

 

Festival traz 85 narrativas documentais de 30 países

O multipremiado 'Holfing Liat', de Brandon Kramer, é um dos títulos mais esperados no 'E Tudo Verdade' deste ano | Foto: Divulgação Mubi

Associado à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (leia-se a fonte do Oscar), o evento organizado pelo crítico Amir Labaki acontece até 13 de abril, com 85 produções de 30 países. Entre os títulos mais esperados, destaca-se "Holding Liat" ("Esperando Liat"), do americano Brandon Kramer, ganhador do troféu de Melhor Documentário na Berlinale, em fevereiro. É o relato do sequestro de uma mulher em meio ao conflito entre Israel e Palestina.

A seção dedicada a Vladimir vai projetar ainda "O País de São Saruê" (1971); "O Homem de Areia" (1981); "O Evangelho Segundo Teotônio" (1984); "Conterrâneos Velhos de Guerra" (1991); "Barra 68 - Sem Perder a Ternura" (2000); "Rock Brasília - Era de Ouro" (2011); "Cícero Dias, O Compadre de Picasso" (2016); e "Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino" (2019). Esse último título, seu canto de cisne, terá exibição no Rio no dia 12, às 16h, no Estação NET Rio.

"Nunca vi o cinema como expressão de um deleite próprio e, sim, como um instrumento de reação, como um veio de participação na sociedade que nos leve à mudança", disse Vladimir ao Correio da Manhã, meses antes de sua morte.

Partiu aos 89 anos. Deixou uma obra lotada de cults, alvo de dissertações e teses de doutorado em universidades de diferentes cantos de seu país natal, a começar pela Paraíba, estado onde nasceu, na cidade de Itabaiana. O DF foi sua casa mais duradoura. Rodou por lá pepitas como "Rock Brasília" (2011). "Desde que me instalei na capital, no Centro-Oeste, já faz meio século que filmo a Esplanada dos Ministérios, a partir da ideia de que ela era destinada ao recreio das famílias nos domingos e feriados", contou o cineasta ao Correio, há cinco anos.

Fora os filmes que fez e as aulas que lecionou, Vladimir ainda presentou o audiovisual de sua pátria com um de seus mais aclamados diretores fotografia: Walter Carvalho, de quem era irmão mais velho. Vladimir criou Walter, quando eles ficaram órfãos de pai e aplicou-lhe Bob Dylan e a poesia de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nas veias, num estímulo à formação artística do caçula, que também virou cineasta, lançando pérolas como "Moacir Arte Bruta" (2005) e "Budapeste" (2009).

Jornalista e professor, Vladimir integrou a equipe do clássico "Aruanda" (1960), de Linduarte Noronha (1930-2012). "No Liceu paraibano, fui aluno de Linduarte, que era mais velho do que eu uns cinco anos. Voltamos a nos encontrar quando eu já escrevia crítica de filmes nos jornais. Quando ele ganhou um prêmio internacional de fotorreportagem, resolveu adaptar um outro texto seu sobre um ex-quilombo. Ali, ele chamou a mim e a João Ramiro Mello para escrevermos juntos o roteiro", recordou-se Vladimir, em entrevista na época da pandemia, em 2020. "Lembro-me da viagem de reconhecimento do tema, subindo a serra do Talhado por uma estradinha carroçável recém-aberta, sob um sol de 40 graus. Ali eu me tornei cineasta".

Respeitado por sua discrição, Vladimir passou à condição de realizador ao pilotar os planos de "A Bolandeira" (1968). No sertão da Paraíba, as chamadas "bolandeiras", rústicos engenhos de madeira que fabricam mel e rapadura, operados por tração animal e humana, subsistem, mas se tornam cada vez mais raros, substituídos por equipamentos mais modernos, a motor. Um modo de vida que cercava aquele engenho do passado está fadado a desaparecer. Essa curta seminal de Vladimir fala sobre essa desaparição. Seu tema, de costume, era a erosão de antigas práticas, o que ele abordava sempre de forma discreta, vide sua abordagem recorrente de falências (e resiliências) utópicas.

"Luto sempre para que o cinema reaja ao que está aí. Em momentos de guerra, o cinema serve como um veio para expor as relações da sociedade com o Poder. Mesmo naquelas narrativas em que a pesquisa de linguagem prevalece, é preciso que haja uma reação. A poesia nasce daí", explicou o cineasta ao Correio. "Todo filme nasce de uma conjuntura. Qualquer material que caia em minha mão, e me sugira que ali possa haver um filme a ser feito, leva-me a uma reflexão para que eu não aceite o que me é dado sem refletir sobre seu sentido e sobre sua conexão com a realidade conjuntural ao nosso redor".

Em 2022, Vladimir ganhou um biopic documental, "Quando A Coisa Vira Outra" (2022), de Marcio de Andrade, que, no streaming do Brasil, pode ser visto no Claro TV .