Enquanto buscava os primeiros holofotes de uma carreira mundialmente premiada, no início da década de 1980, o milanês Marco Tullio Giordana viu o cinema de sua pátria - um país que gerou Rossellini, Fellini, Antonioni, Lina Wertmüller e mais uma tonelada de titãs da direção - entrar numa entressafra audiovisual. As ideias estavam lá. Já os meios de produção (sobretudo o dinheiro) começaram escassear, indo para a TV, deixando cineastas míticos de outrora em apuros.
Ainda assim, o ganhador do Leopardo de Ouro por "Maledetti Vi Amerò" (conhecido internacionalmente como "To Love the Damned"), em 1980, não foi abalada por crises e seguiu filmando. Sua trajetória de 45 anos de arte justifica sua presença no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, conhecido e celebrado apenas como Bafici. No sábado, seu legado ilumina as telas da Argentina com uma projeção de gala de "La Vita Accanto", seu mais recente exercício autoral.
"A Itália construiu sua relevância nas telas por filmes que não se submetiam a fórmulas, sem se render aos algoritmos, que reinam nos tempos de hoje. O algoritmo é o contrário da poesia, pois quando percebemos as fórmulas, a essência se perde", disse Giordana ao Correio da Manhã, via Zoom. "Hoje, eu vejo o público do audiovisual preso em soluções formulaicas, confinado a uma ideia estúpida de controle. O futuro do cinema só será viável quando o olhar de quem dirige se libertar de convenções".
Fã do Brasil, Giordana tem em seu currículo cults como "Os Cem Passos" (Melhor Roteiro no Festival de Veneza em 2000) e o épico "O Melhor da Juventude" (Prêmio de Júri Popular no Festival de Roterdã de 2004). Ano passado, visitou Locarno para receber uma láurea honorária pelo conjunto de sua obra. Lançou "La Vita Accanto" por lá. Agora, almeja conhecer a reação da cinefilia argentina diante de uma trama familiar de perdas e de reinvenções.
"É um filme sobre quatro solidões que correm em paralelo, presas numa armadilha afetiva da qual não se pode fugir", explica Giordana. "O código de sangue que as une parece ampliar as angústias daquela redoma sentimental onde estão confinadas. A escolha de ter personagens gêmeos me dá a chance de ampliar o tema da cumplicidade dentro de uma narrativa sobre pessoas que buscam uma conexão. Aprendi com o cinema de Luchino Visconti, e seus filmes magníficos, a contar o máximo possível sobre a condição humana ao me centrar na cumplicidade".
Na base de "La Vita Accanto" há um roteiro assinado pelo aclamado diretor Marco Bellocchio, de "O Sequestro do Papa" (2023) e "De Punhos Cerrados" (1965). A trama que encantou os olhos de Locarno narra a dor de uma jovem rejeitada pela mãe ao nascer com uma marca de nascença que se transforma numa pianista ao seguir os passos de sua tia musicista.
"Esse projeto nasce de um romance de Mariapia Veladiano e Bellocchio queria filmá-lo há muito tempo. Ele chegou a fazer uma versão do roteiro, tentou rodá-la, mas acabou desistindo. Quando ele me mostrou o script, eu gostei muito do que li e ele se propôs a me produzir. Na ocasião, ele falou: 'Meta a mão no que escrevi e faça do seu jeito, siga o seu próprio caminho'. Quando vi o filme em Locarno, percebi que fiz algo completamente diferente do que ele fazia", diz Giordana. "A experiência de ser produzido por um artista, sobretudo alguém do porte de Bellocchio, é algo singular, por que você sente estar trabalhando com alguém que pensa na arte em primeiro plano e, não, no orçamento, nas contas".
Vai ter Bafici até o dia 13. Atento a que se fez de melhor na Europa, na Ásia e na África, o radar da direção artística do evento portenho (assinado por Javier Porta Fouz) apitou diante da chance de exibir o aclamado "O Ano Novo Que Nunca Veio", de Bogdan Muresanu (Romênia), em sua seleção oficial. Foi dele o prêmio principal da mostra Horizontes do Festival de Veneza do ano passado. Seu enredo se passa em 20 de dezembro de 1989, quando o povo romeno se encontra à beira de uma revolução. As ruas estão repletas de manifestações, os estudantes tripudiam do regime por meio da arte e as apresentações de réveillon glorificam a figura do ditador Nicolae Ceausescu. Ao mesmo tempo, no desconforto das casas sem aquecimento, famílias enfrentam conflitos pessoais. Esse turbilhão redesenha caminhos... e afetos.
Ainda no pacotão Bafici 2025 entram: "O Último Azul", de Gabriel Mascaro (Brasil); "Voyage Au Bord De La Guerre", de Antonin Peretjatko, e "Les Barbares", de Julie Delpy (França); o ganhador da Concha de Ouro "Tardes de Soledad", de Albert Serra (Espanha); "Levados Pelas Marés", de Jia Zhang-ke (China); "Misty - A História de Erroll Garner", de Georges Gachot (Suíça); "Spermageddon", de Tommy Wirkola e Rasmus A. Sivertsen (Noruega); "La Vita Accanto", de Marco Tullio Giordana (Itália); "Reflet Dans Un Diamant Mort", de Hélène Cattet e Bruno Forzani (Bélgica); e (o estonteante) "Pai Nosso - Os Últimos Dias", de Salazar de José Filipe Costa (Portugal).