Tem França por todo lado da capital argentina, incluindo o esperado "Les Barbares", da atriz Julie Delpy, e a animação "Slocum et Moi", de Jean-François Laguionie, na programação do 26º Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, conhecido e celebrado apenas como Bafici. O volume de produção mastodôntico dos franceses e o barulho gerado por títulos recentes da pátria presidida por Emmanuel Macron - vide "Anatomia de uma Queda" e "Emilia Pérez" - justificam a presença do país que inventou a cultura cinematográfica (em 1895, com a obra dos irmãos Lumière) na maratona que rastreia novos veios estéticas e faróis de linguagem para a telona (e as telinhas de streaming). Nada mais natural, portanto, do que uma evocação à obra (e à vida apaixonada) de François Truffaut (1932-1984) nesse contexto de culto à vertente revolucionária (e poética) da imagem em movimento.
Sinônimo fílmico de lirismo, o ganhador do Oscar por "A Noite Americana" (1973) vai perfumar o Cine Teatro Alvear de saudade neste domingo na projeção do documentário "Le Scénario De Ma Vie", de David Teboul. A sessão engata ao Bafici ao circuito de eventos que lamentam os 40 anos da morte do diretor e batem cabeça para seu legado.
Lançada mundialmente em Cannes, em maio de 2024, essa produção dirigida por David Teboul se baseia em imagens de arquivo (algumas conhecidas, outras não), em entrevistas pouco citadas de Truffaut, na sua correspondência com o pai (adotivo) e, sobretudo, num relato autobiográfico iniciado alguns meses antes da sua batalha final contra o tumor no cérebro que o matou.
Segundo a pesquisa do documentarista, o cotidiano criativo de Truffaut tinha o ritmo de um trem de altíssima velocidade, embalada em sucessos como "A Mulher do Lado" 91981). Ele tinha apenas 52 anos quando a palavra O Fim surgiu em seu caminho. Alguns meses antes de morrer, o cineasta tinha começado a partilhar a história da sua juventude com um velho amigo, Claude de Givray, mergulhando profundamente na sua história familiar, a fim de fazer um livro com suas recordações. Seu tempo de tela (e na Terra) acabou por escassear e FT não conseguiu terminar sua autobiografia, que pretendia chamar de "O Roteiro da Minha Vida". O que Teboul faz, a partir de registros epistolares, é revelar o que seria essa derradeira narrativa truffautiana. Sua investigação arranca lágrimas de cinéfilos.
Comove sobretudo aquelas e aqueles que se irritaram com o americano Quentin Tarantino quando o gênio por trás de "Pulp Fiction" (1994) acusou Truaffut de ser superestimado e de ter criado uma narrativa quase amadora em sua incursão pelos códigos do filme policial, como "A Noiva Estava de Preto" (1968). Já Steve Spielberg teve uma atitude oposta ao falar dele quando recebeu o Urso de Ouro Honorário, na Berlinale 73, em 2023. "Estive com Truffaut nos sets de 'Contatos Imediatos do Terceiro Grau' e eu queria aproveitar a chance de estar a seu lado, para aprender, quando toquei na ideia do que viria a ser 'E.T.'. Como ele havia feito, fazia pouco, 'Na Idade da Inocência', com elenco juvenil e infantil, Truffaut me disse que eu deveria me arriscar a ter uma criança como protagonista. A força da infância, com um ser do espaço, contagiaria as plateias. Como ele estava certo nesse conselho! Como eu devo a ele!", exclamou Spielberg, que faz parte do coro gigantesco de fãs do realizador que, em 1959, fez de "Os Incompreendidos" um marco de reinvenção das formas de olhar e um fenômeno de bilheteria, com quatro milhões de ingressos vendidos só na França, onde ganhou a láurea de Melhor Direção na competição de Cannes.
É lá mesmo, em seu país de berço, que o mercado editorial se agita em torno da efeméride de sua partida. Uma das agitações é o lançamento do livro "Lettre Ouverte à François Truffaut", de Eric Neuhoff. É uma coletânea de artigos, em forma de cartas, nos quais o autor louva a relevância do cineasta a construção de narrativas amorosas.
Em bancas em quiosques de Paris, a "Cahiers du Cinéma", a mais prestigiada revista focada no pensamento audiovisual de todo o planeta, oferta um mimo para seus leitores - atraindo também novos públicos - de flerte com a obra de Truffaut: um dossiê com curiosidades, resenhas analíticas e textos do mítico realizador.
"Eu me sinto parte desse grupo de cineastas para quem o cinema é um prolongamento da juventude, como se fôssemos crianças que reconstruíram o mundo com os brinquedos e, na idade adulta, continuam brincando com os filmes", escreveu Truffaut em de seus ensaios memorialísticos sobre uma obra cheia de êxitos, como "Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois" (1962), "Um Só Pecado" (1964) e "Domicílio Conjugal" (1970).
Laureado com 31 prêmios numa carreira que vai de 1955 a 1983, coroada com três indicações ao Oscar e muitos sucessos de bilheteria, Truffaut mudou a forma de se fazer e de se ver filmes a partir de um projeto estético de hemodiálise da imagem. Virou um porta-voz da Nouvelle Vague, uma linha de produção de filmes pautada no engajamento das narrativas audiovisuais com as fraturas éticas e emotivas do mundo a seu redor, modificando os dispositivos de construção do discurso cinematográfico de modo a fugir do engessamento, do classicismo.
Na busca por uma França que se desagarrasse das opressões morais e das preguiças intelectuais, Truffaut assumiu a infância ("O garoto selvagem"), o feminino ("A mulher do lado") e o próprio ofício de cineasta ("A noite americana") como seus temas mais essenciais, passeando por gêneros diferentes, em prol da renovação da cinefilia.