Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Crônicas ucranianas nas telas

À luz das estéticas do realizador Sergey Loznitsa (no alto), 'A Invasão' documenta a resistência da Ucrânia contra a invasão russa | Foto: Divulgação

Sintonizado com as pautas mais urgentes da contemporaneidade, o É Tudo Verdade sempre dá um jeito de encaixar cartografias de conflitos armados em sua programação, o que abre espaço para a Ucrania em sua 30ª edição (em circuito até o dia 13), pelas lentes de um investigador de feridas eslavas históricas: Sergei Loznitsa. Nesta sexta, às 18h, o Estação NET Rio projeta o novo longa-metragem do aclamado realizador de "Uma Criatura Gentil" (2017) e "Donbass" (prêmio Un Certain Regard de Melhor Direção em Cannes em 2018) na competição oficial da maratona documental brasileira: "A Invasão" ("The Invasion"). Bielorrusso de nascença (egresso de uma cidade chamada Baranavichy, quando o país vivia sob o jugo da União Soviética), mas criado em Kiev, o cineasta de 60 anos faz uma espécie de crônica da vida ucraniana em tempos de violência, numa fricção contrária a política de ódio de Vladimir Putin.

"Se você analisa o Tempo em relação à dramaturgia desse meu filme mais recente, no qual partimos de fatos reais, a relação e a percepção física do que é cronológico passa por uma linha testemunhal, de vivência de uma História em transformação, na luta pela sobrevivência de um povo", disse Loznitsa ao Correio da Manhã em entrevistas em Cannes (onde "A Invasão" concorreu ao troféu L'Oeil d'Or), e em Marrakech, onde palestrou. "Faço cinema para combater clichês, entre eles o da soberania e o da redenção. No discurso cinematográfico, não existe tempo como matéria palpável, e nem só como abstração: o que chamamos em vias práticas, na direção, de tempo é uma ilusão que não se remete apenas ao passado, mas sim a toda a percepção das instâncias que nos cercam, entre elas as instâncias do Poder. Nem presente e nem futuro são bens materiais, como o cinema comercial menos reflexivo faz parecer ser. Tudo é ilusão de uma projeção de pertencimento. A lucidez de um cineasta é saber identificar as estratégias de criação de controle que estão por trás desse pensamento ilusório, de consolidação de verdades".

Loznitsa vem da Matemática. Estudava Cálculo, Geometria, Trigonometria, PAs e PGs no momento em que a URSS acabou e decidiu aportar seu olhar de algebrista para o audiovisual no fim dos anos 1990, quando começou a rodar seus primeiros curtas. Estabeleceu a partir de 2000 uma verve documental autoralíssima (sobretudo em seu uso de imagens de arquivo), marcada por estudos sobre a paisagem e a população russa, com filmes como "Vida, Outono" (1998), "Estação de trem" (2000), "Retrato" (2002) e o monumental "State Funeral" (2018).

"O que me interessa no discurso do documentário não é julgar o que uma pessoa, um território ou uma instituição fizeram e sim o que uma determinada mirada publicitária sobre feitos e sobre fatos pode gerar. Eu filmo para abrir dicotomias", explicou o cineasta em papo com o Correio da Manhã no Marrocos, em 2019.

De lá para cá, em meio à pandemia, ele ficou mais no registro da não ficção, embora tenha em seu currículo dramas e épicos, entre eles "Na Neblina", com o qual ganhou o Prêmio da Crítica de Cannes, em 2012, ao rever a II Guerra. "Em enredos ficcionais, eu encontro o momento em que História vira ilusão", disse o cineasta, popularizado entre os brasileiros pelo empenho de um amigo (e entusiasta), o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho ("Bacurau"). "Ele abriu espaço para mim em seu festival, o Janela no Recife".

Espaço igualmente potente vem do É Tudo Verdade, que aloca "A Invasão" na disputa pelo prêmio do certame internacional. Filmado num período de dois anos, o longa retrata o dia a dia da população civil da Ucrânia, numa peleja contra a barbárie. No domingo, a produção terá sessão em São Paulo, às 21h30, na Cinemateca Brasileira. No dia 12, haverá mais uma sessão do filme, no Instituto Moreira Salles (IMS) da Avenida Paulista, às 20h30.

"Cada registro que levo às telas tenta refletir sobre o mundo à minha volta, a partir de um processo de criação livre, que parte do meu laptop e da minha curiosidade", diz Loznitsa. "A retórica é um efeito político. É necessário desafia-la".