Entusiasta de filmes pautados pela palavra, onde a dramaturgia se faz pelo verbo, tributária a heranças da literatura e do teatro, a Argentina admira a estética da palavra esculpida a baixo orçamento (e profundo existencialismo) pelo diretor sul-coreano Hong Sangsoo, a julgar pela recorrência de sua obra no Bafici. Em sua 26ª edição, iniciada no dia 1º, o Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires vai projetar o longa-metragem mais recente dessa máquina de filmar, "What Does That Nature Say to You" ("Geu jayeoni nege mworago hani"), nesta terça, às 16h, no Teatro San Martín. Rola mais uma projeção nesta quinta, às 21h30, no Cine Gaumont. A expectativa de nuestros hermanos é grande, dada a calorosa recepção que a fita teve na Berlinale, em fevereiro, ao disputar o Urso de Ouro.
Foi uma surpresa o time de juradas e jurados presidido pelo cineasta americano Todd Haynes (de "Segredos de um Escândalo") não ter agraciado o longa com troféu algum, pois toda vez que concorre em Berlim Sangsoo conquista algo. Em 2024, ao receber o Grande Prêmio do Júri por "As Aventuras de Uma Francesa", com Isabelle Huppert (sua sazonal parceira), o realizador de 64 anos virou-se para a plateia e perguntou: "O que vocês viram no meu filme?". Seis meses depois dessa vitória alemã, ele foi ao Festival de Locarno, na Suíça, concorrer ao Leopardo de Ouro com outro longa, "Através Do Fluxo" ("By The Stream"), exibido aqui pela Mostra de São Paulo. Saiu das terras helvéticas com outro mimo: sua companheira (de vida e de obra), a atriz e produtora Kim Min-hee, foi laureada em terras helvéticas por sua atuação. Eles criam a dois em esquema de guerrilha.
"Não faço contas acerca de cálculos orçamentários, pois cuido de muitos aspectos dos meus filmes", disse Sangsoo ao Correio da Manhã, na Berlinale, deixando transparente o fato de que ele mesmo escreve, fotografa e monta seus longas, além de compor as trilhas sonoras que dão embalo a suas tramas de conversação e reflexão. "Um dia, numa entrevista, eu disse que eu filmo por cerca de US$ 100 mil. Venho mantendo essa cifra. Trabalho de modo compacto. Eu conto apenas com uma parceira de produção (tarefa de Kim Min-hee), um assistente e um operador de microfone para o som. É uma equipe de quatro pessoas. Cada projeto leva umas três semanas, sendo que a filmagem em si me consome uns sete ou oito dias de trabalho".
Povoado por personagens fascinantes em suas diferentes seções, o Bafici vai conhecer amanhã o arredio Donghwa, um poeta de trinta e poucos anos. O protagonista de "What Does That Nature Say to You" leva a namorada, Junhee, para uma viagem de carro de Seul até a casa dos pais dela, nos arredores da localidade de Icheon. Ao notar a surpresa do seu amado com o tamanho da casa e os seus jardins montanhosos, Junhee sugere que ele dê uma olhadela rápida no local, mas, na entrada da garagem, eles encontram o pai da mulher, que convida Donghwa para passar o dia com a família. Todos engatam numa ciranda de conversas: o patriarca; a sua esposa, que também é poeta; e as duas filhas adultas, uma delas em crise depressiva. Naquela conversa regada a álcool, Donghwa embebeda-se e deixa cair a sua máscara de deferência, revelando um lado bem constrangedor.
"O cinema se esforça para embelezar o óbvio por apostar na elasticidade dos símbolos que cada imagem traz. Não acredito em símbolos, eu acredito no que há de concreto por trás das relações", disse Sangsso, cuja carreira começou em 1996, com "O Dia Em Que o Porco Caiu no Poço". "Parto de arquétipos e mostro, pouco a pouco, que eles não significam nada".
Alçado a um status de popstar autoral depois de ganhar o Prix Un Certain Regard de Cannes, em 2010, com "Hahaha", Sangsoo tem seu nome (por vezes) grafado como Sang-soo ou Sang-Soo. A grafia mais corriqueira, Sangsoo, aparece no recém-lançado "Dictionnaire du Cinéma Coréen", que o pesquisador Antoine Coppola acaba de lançar na França, via Nouveau Monde Editions. Nada desse incansável operário da arte, que lança dois longas por ano, é unânime. Apesar disso, é surpreendente a habilidade que Sangsoo tem de criar. Sua empresa, Jeonwonsa Film Co. Production, consegue dar conta de sua mirada enxuta e de sua urgência.
Rola Bafici na Argentina até o dia 13. Nesta segunda, o evento confere a produção espanhola "Una Quinta Portuguesa", de Avelina Prat, e o cubano "Crónicas del Absurdo", de Miguel Coyula. No sábado, serão conhecidos os vencedores da maratona argentina.