Duas décadas se passaram desde que os festivais de cinema descobriram uma estética singular, de CEP romeno, que se estrutura sob tragicomédias, sempre escancarando inadimplências de um estado que, por décadas a fio, viveu sob o jugo comunista, administrado pela pesada mão de Nicolae Ceausescu (1918-1989). O sucesso mundial de "O Ano Novo Que Nunca Veio" ("The New Year That Never Came"), cuja carreira começou e setembro, coroada com o prêmio oficial da mostra Horizontes de Veneza, comprova que a primavera cinematográfica da Romênia se mantém firme e forte nas telas.
Seu realizador, Bogdan Muresanu, é um dos artistas essenciais à manutenção do interesse mundial pelas imagens que se produzem em Bucareste e arredores. O longa é uma das atrações (fora de concurso) mais badaladas do 26º Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, o Bafici. O evento escalou Bogdan para integrar o júri de curtas e longas internacionais (onde o Brasil concorre com "Minha Mãe É Uma Vaca", de Moara Passoni) e promove ainda uma retrospectiva de sua obra, com títulos como "The Christmas Gift" (2018) e "Negruzzi 14 (The Last Day of a House)" (2016).
Em junho, ele terá um filme novo para exibir planeta adentro, a animação "Magicianul [The Magician]" ("O Mágico"), que vai inaugurar sua carreira global a partir do Festival de Annecy, a Meca dos desenhos. O cineasta adiantou detalhes de sua trama neste papo com o Correio da Manhã na capital argentina, que se corre trás de ingressos para conferir o prestígio de "O Ano Novo Que Nunca Veio", exibido pela Mostra de São Paulo, em outubro. Seu enredo se passa em 20 de dezembro de 1989, quando o povo romeno se encontra à beira de uma revolução. As ruas estão repletas de manifestações, os estudantes tripudiam do regime por meio da arte e as apresentações de réveillon glorificam a figura de Ceausescu. Ao mesmo tempo, no desconforto das casas sem aquecimento, famílias enfrentam conflitos pessoais. Esse turbilhão redesenha caminhos... e afetos.
Na entrevista a seguir, Bogdan compartilha conosco suas inquietações geoplíticas.
Filmes como "O Ano Novo Que Nunca Veio" e, agora, "The Magician" revivem diferentes momentos da História da Europa. De que maneira vetores políticos e culturais da Romênia modulam essa recriação que faz do Tempo, ao olhar o passado?
Bogdan Muresanu: A animação que eu vou mostrar no Festival de Annecy, "The Magician", é ambientada em um dia, em 1910, quando a primeira estação elétrica de energia instalada na Romênia. Tenho um outro filme, "Negruzzi 14 (The Last Day of a House)" (incluído no Baficii), que também se passa num dia. Esses trabalhos retratam meu interesse por pontos de ruptura nas camadas do Tempo. Camadas fraturadas. Talvez eu devesse tratar essa recorrência como um assunto para uma sessão de psicanálise. Essa minha relação com o Tempo sugere o meu interesse em falar de pessoas que estão vivendo no lugar errado. Bucareste é um lugar duro.
Em que ponto, numa reconstituição de época, existe a tentação de fazer de um filme uma aulla de História?
A História não é confiável. Ele escrita por vencedores. Aí entra a arte. Arte não lida com certezas, mas, sim, com sombras. A perspectiva da arte é a dúvida.
Há exatamente 20 anos, "A Morte do Sr. Lazarescu" (2005), de Cristi Puiu, atraiu as atenções do planisfério cinéfilo para a produção audiovisual da Romênia e para as vozes autorais que reverberam a partir de Bucareste. Até Palma de Ouro vocês ganharam, com "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", em 2007. Como a produção cinematográfica romena mudou nessas duas décadas?
O que mudou a partir dos anos 2000 é que passamos a ser enquadrados a partir de uma espécie de bloco, a Nova Onda Romena, mas havíamos demarcado nosso espaço antes de Lazarescu. Primeiro veio, "È Pericoloso Sporgersi", de Nae Caranfil, em 1993, que teve eco na mesma época de "Pulp Fiction", e, depois, o primeiro longa de Puiu, "Stuff and Dough" ("Os Bens e o Dinheiro"), de 2001. Esses filmes trouxeram uma sensação de que fazíamos um cinema moderno. A narrativa de Nae Caranfil, por exemplo, trouxe para a minha geração uma sensação de que, no cinema, a Romênia estava sintonizada com o zeitgeist de sua época. Isso conta muito quando se pensa que somos um dos países mais pobres do mundo.
O fantasma de Nicolae Ceausescu, que governou a Romênia de 1965 a 1989 como secretário-geral do Partido Comunista, foi exorcizado?
A presença dele ainda se faz sentir toda vez que alguém, lá, começa a falar bem do comunismo. Quem fala assim não deve se lembrar mais de como ele era. A Romênia daquele tempo era um lugar sombrio. Parecia que vivíamos uma noite perpétua.
Qual é o orçamento médio de uma produção cinematográfica hoje na Romênia?
Não se filma um longa por menos de 800 mil euros. Em geral, a base de um longa romeno é um milhão de euros. "O Ano Novo Que Nunca Veio" custou um pouquinho mais, por usar muitas locações.