Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A fera do rock nas telas do Bafici

A banda Dr. Feelgood é tema do .doc 'Oil City Confidential', em cartaz na edição 2025 do Bafici | Foto: Divulgação

No Brasil, o cineasta britânico Julien Andrew Temple já é de casa. Filmou "Rio 50 Degrees", em meio à preparação para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 em dias de pura efervescência na cidade. Até o Rock in Rio passou por suas lentes. Antes disso, em plena década de 1980, ele juntou Mick Jagger e Paulo César Peréio (1940-2024) nos sets de "Running Out Of Luck", nas orlas nacionais. Quem foi capaz de dirigir duas forças tão indomáveis merece todo (e qualquer) respeito, não só o brasileiro, mas o argentino também, impulsionando em especial pelo histórico invejável de filmes sobre lendas da música que esse documentarista de 71 anos tem.

Envolvido uma vez mais com Jagger, na finalização do longa-metragem "I Am Curious Johnny", Temple tem dois de seus maiores sucessos na programação do 26º Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, o Bafici. Faz parte da mostra Britannia Lado B: We Will Rock You com "Oil City Confidential" (2009) e com "Glastonbury" (2006).

"Neste momento em que o Reino Unido encara a ressaca do Brexit, é fundamental que a juventude possa conhecer os feitos dos outsiders da canção", disse Temple ao Correio da Manhã, em recente entrevista no Festival de San Sebastián. "Tenho uma estrada longa no rock, com artistas que exigiam de mim o que poderia haver de mais transgressor".

Consagrado também na ficção com filmes como "The Eternity Man" (2008) e "Absolute Beginners" (1986), Temple já dirigiu vídeos para David Bowie, Neil Young, Billy Idol, Depeche Mode e Sade. Em "Glastonbury", figuras como Morrissey, Joe Strummer, Björk e David Bowie se posicionam diante das câmeras do cineasta para um registro de um dos festivais de maior relevo da indústria fonográfica de língua inglesa, realizado há 54 anos em Pilton, Somerset, na Inglaterra. Já "Oil City Confidential" resgata os feitos do conjunto Dr. Feelgood, banda britânica do início dos anos 1970 cuja agressividade foi essencial para a gênese do movimento punk. Seus artistas (Kevin Morris, P H Mitchell, Steve Walwyn e Robert Kane) surpreenderam a cena musical do Reino Unido com sua postura feroz e seus solos de guitarra ousados.

"Tenho uma estrada longa no rock, com artistas que exigiam de mim o que poderia haver de mais transgressor. Trabalhei com o Sex Pistols, em 'God Save The Queen', no fim dos anos 1970, e lembro de ter sugerido a eles que usassem trechos de animação em um vídeo, para dar conta do que a gente precisava expressar. Era uma forma de inovar a narrativa dos clipes. Lembro de ouvir uma reclamação de Sid Vicious: 'Eu não quero virar um bicho animado'. Mas quando o povo da banda viu do que o cinema animado é capaz, eles perceberam o quanto essa linguagem pode trazer para a arte", disse Temple ao Correio da Manhã, em 2020, na Espanha, quando foi laureado com o Prêmio Especial do Júri no Festival de San Sebastián por "Crock of Gold: A Few Rounds with Shane MacGowan".

Inédita no Brasil, essa produção é uma carta de amor documental à rebeldia do rock'n'roll e aos poderes analgésicos (ainda que autodestrutivos) do álcool, produzida pelo ator americano Johnny Depp. Seu protagonista, Shane Patrick Lysaght MacGowan (1957-2023) é um deus para o eterno Jack Sparrow e é adorado como divindade pelos fiéis ao credo do punk rock. Orgulhoso de suas raízes irlandês, o músico escreveu e cantou algumas das letras mais selvagens da língua inglesa das últimas quatro décadas.

"Compartilhei a era punk com Shane e fiz uma primeira entrevista com ele ainda em P&B. Ao rodar 'Crock of Gold', percebi que o velho punk ainda estava lá com ele. Shane passou dos limites numerosas vezes, mas sempre voltou, firme, com a mesma indignação de antes", disse Temple, que já teve seus longas projetados pelo Bafici no passado. "Cultivo um cinema demiúrgico".

O Bafici chega ao fim neste domingo. Sua premiação será conhecida no sábado.