É dia de Cannes anunciar as atrações de seu 78º festival, sob forte expectativa brasileira por "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, e sob torcida organizada da Romênia em prol da participação de "Dracula's Park", de Radu Jude, na competição pela Palma de Ouro, marcada para ocorrer de 13 a 24 de maio. Não é apenas o povo romeno que cruza dedos a torcer por Jude.
A cinefilia argentina anda in love com o diretor de 48 anos desde que viu seu filme mais recentes, "Kontinental '25", no Bafici, o Festival Internacional de Buenos Aires. Com DNA brasileiro em sua medula, sob a produção da mesma RT Features disputou o Oscar com "Ainda Estou Aqui", o longa-metragem estreou mundialmente na Berlinale, em fevereiro, na briga pelo Urso de Ouro. Saiu dela com o prêmio de Melhor Roteiro.
Seu prestígio começou em 2021, no auge da pandemia, graças ao Urso Dourado que ganhou na capital alemã por um filme de conexão frontal com a histeria da covid-19: "Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental". Há como vê-lo na grade da plataforma digital Reserva Imovisio). Parte dos procedimentos e dos temas vistos naquela fita voltam em "Kontinental '25", empreitada cheia de ironia que ele construiu com a ajuda do produtor carioca (radicado em SP) Rodrigo Teixeira. Um dos pontos centrais é um balanço do saldo comunista nas repúblicas do Velho Mundo e as tensões da Hungria e de sua Romênia natal.
"A poesia que pode existir no cinema que eu faço vem do choque entre a ficção e o documentário, numa espécie de retorno aos irmãos Lumière (os inventores da linguagem cinematográfica, inaugurada por eles em 1895). Rodei este longa com um smartphone e me pergunto o que os Lumière filmariam se tivessem um celular", disse Jude ao Correio da Manhã na Berlinale.
Estética debochada
Teixeira estava com ele no festival. "Radu é um diretor que admiro e que tem um trabalho espetacular", disse o produtor. "O cineasta brasileiro Gustavo Vinagre, a quem eu acabo de produzir, falou muito do Jude pra mim, no Festival de Berlim de 2024. Eu resolvi procurá-lo. Aí ele trouxe essa ideia do 'Kontinental '25', e isso ao mesmo tempo em que idealizava 'Dracula's Park', que vem por aí".
A trama de "Kontinetal '25" se passa na região de Cluj, na Transilvânia (a pátria do vampirão de Bram Stoker). Em seu enredo, um sem-teto comete suicídio depois de ser expulso de seu abrigo no porão de uma casa. Orsolya, a oficial de justiça que executou o despejo, é impelida a fazer várias tentativas para lidar com seus sentimentos de culpa pela morte do sujeito.
Respeitado por uma estética debochada, que transpõe os limites entre o que é realidade e o que encenado, o realizador explicou que "Kontinental '25" é sua experiência "mais ficcional", no sentido clássico da expressão. "Tudo é muito imaginativo nesse filme, ainda que eu tenha partido de um caso real", disse.
No Brasil, o filme anterior do cineasta, "Não Espere Muito Do Fim Do Mundo" ("Nu Astepta Prea Mult De La Sfârsitul Lumii"), que ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Locarno em 2023, só estreou no streaming. Está desde abril na plataforma MUBI, que ainda lançou seus curtas "Plastic Semiotic" (2021) e "The Potemkinists" (2022),
"A maior parte do conhecimento cinematográfico que eu tenho vem da pirataria. É óbvio que desejo ver meu filme projetado, com som bom, como é o caso de uma exibição na Berlinale Palast, mas eu não tenho nada contra plataformas como a Netflix e aprecio o trabalho da MUBI. Lá, você pode ver um Godard num dia, um curta da América do Sul no outro, um clássico de Hollywood na sequência. Acho que eu tenho uma das primeiras assinaturas do www.mubi.com desde que a plataforma surgiu", disse o diretor, que, nesta quinta, aguarda as boas novas de Cannes acerca de "Dracula's Park", cujo elenco é similar ao de "Kontinetal '25". "Não sou um purista. Sei do valor de novos suportes para a descobrirmos filmes".
Retrospectiva
Além de Radu, o Bafici acolhe a obra de um outro bamba autoral da Romênia: o realizador Bogdan Muresanu. O sucesso mundial de seu último filme, "O Ano Novo Que Nunca Veio", coroado com o prêmio Horizontes do Festival de Veneza, assegurou ao realizador uma retrospectiva na maratona cinéfila da Argentina.
Em sua competição internacional oficial, o Bafici vê o filme brasileiro "Minha Mãe É Uma Vaca", de Moara Passoni, ampliar seu fã-clube. Escrito por Fernanda Frotté em dobradinha com sua realizadora, esta produção vem arrebatando olhares pelo mundo afora desde o Festival de Veneza pela direção de arte de Isabel Azevedo e pela fotografia de Carolina Costa. Em sua trama, a jovem Mia espera notícias do paradeiro da mãe. Longe da proteção materna, a menina é deixada aos cuidados da tia, imersa na paisagem mítica do Pantanal. Sob a ameaça de onças e queimadas, ela descobre que o amor pode se manifestar de maneiras inesperadas.