Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Nau portuguesa aporta no Bafici

'Cartas Telepáticas' fala de H. P. Lovecraft (1890-1937) e Fernando Pessoa (1888-1935), dois dos escritores mais influentes do século 20. Criado com imagens de IA, este estudo literário explora ligações invisíveis entre os pontos de vista únicos desses dois autores | Foto: Divulgação

 

Portugal tá que tá... nas telas... desde a vitória de "Grand Tour", de Miguel Gomes, em Cannes, em maio do ano passado. Recompensada com a láurea de Melhor Direção na Croisette (uma vitória inédita da terrinha no evento francês), essa viagem histórica estreia por aqui via MUBI, no próximo dia 18. Sua trama narra a reeducação do olhar da corajosa Molly (Crista Alfaiate) em terras asiáticas. Em 1917, ela é abandonada pelo noivo depois de anos de relacionamento. O rapaz, Edward (Gonçalo Waddington), refugia-se em Rangum, Mianmar, para evitar as bodas, mas ela o segue. Mergulha num mundo que não é o seu, de códigos avessos aos seus.

Lá, vai se apaixonar por si e encontrar novas alegrias para rir - do seu modo peculiar de gargalhar. Gomes integra um bonde de cineastas com CEP lusitano que hoje se espalha por mostras competitivas de todo o planeta. O Bafici é uma delas. Esse é o apelido carinhoso do Festival de Buenos Aires, que anda doidinho com "Pai Nosso - Os Últimos Dias De Salazar", de José Filipe Costa.

Essa produção chegou com o selo de qualidade de outra maratona cinéfila de peso, Roterdã, na Holanda. Num exercício de sutileza, Costa, diretor do crocante "Prazer, Camaradas!" (2019), dá uma aula de História (e outra de invenção) ao se embrenhar pela ficção a fim de narrar o calvário do líder luso António de Oliveira Salazar (1889-1970), com Jorge Mota no papel do estadista. Existe sátira no engenho dramatúrgico do roteiro escrito pelo cineasta com Letícia Simões e Daniel Tavares, numa reconstituição dos delírios salazaristas na reta final de sua vida, já distante do Poder.

Embora dirigido por uma espanhola (Avelina Duprat, de Valência), "Una Quinta Portuguesa" dá o ar da graça da geografia de Ponte de Lima e Esposende (cidades da Pangeia lusitana) ao Bafici 2025. A diva de Lisboa Maria de Medeiros Esteves Victorino de Almeida (cineasta, cantora e atriz) injeta viço ao longa, que concorre a troféus na competição internacional de Buenos Aires. Atuações comoventes dela e de Manolo Solo e Maria de Medeiros asseguram lirismo a esta narrativa de delicados enquadramentos da diretora de "Vasil" (2022). A fotografia dionisíaca de Santiago Racaj aquece o clima deste enredo sobre recomeços. Nele, Fernando, um pacato professor de geografia, caiu num abismo sentimental após o desaparecimento de sua mulher. Sem rumo na vida, ele assume uma nova identidade e passa a trabalhar como jardineiro em uma vila de Portugal, onde faz uma amizade inesperada com o proprietário e entra em um mundo que não lhe pertence.

Além de coproduções como "Ariel" (de Lois Patiño) e "Tardes de Soledad" (obra-prima do catalão Albert Serra), Portugal avança Bafici adentro com "Maria Henriqueta Esteve Aqui", de Nuno Pimentel. O cineasta nos transporta a 1872. Na ocasião, o Imperador do Brasil, D. Pedro II, viajou para o Porto e ficou hospedado no Grand Hotel du Louvre, propriedade de Maria Henriqueta de Mello Lemos e Alvelos. Hoje, a tentativa de filmar esse episódio se torna uma invocação... de memórias, sons e sensações.

Ponha ainda na seleção dos "patrícios" deste Bafici o belo "Cartas Telepáticas", de Edgar Pêra, produzido por Rodrigo Areias. Referendado pelo Festival de Locarno, na Suíça, o longa fala de H. P. Lovecraft (1890-1937) e Fernando Pessoa (1888-1935), dois dos escritores mais influentes do século 20. Criado com imagens de IA, este estudo literário explora ligações invisíveis entre os pontos de vista únicos desses dois autores.

Em fevereiro, durante a Berlinale, a pátria de Camões agarrou-se aos holofotes com "Duas Vezes João Liberada", de Paula Tomás Marques. A partir das vivências de um corpo avesso ao binarismo histórico, inconformado com o dito "determinismo biológico", este experimento poético festeja o desejo de pessoas que almejam ser as profetas de suas próprias histórias, embora a Inquisição cruze seu caminho.

Agora é saber o que a Quinzena de Cannes (que anuncia suas pepitas na semana que vem) e o Festival de Veneza reserva para o audiovisual luso.