Ao encerrar as filmagens de "Roma Elástica", com três das maiores estrelas da Europa (Marion Cotillard, Alba Rohrwacher e Jasmine Trinca), Betrand Mandico deve passar a um patamar de maior destaque (e de mais acolhimento) aos olhos do mercado exibidor da França, sua pátria natal, mas não espera perder sua aura de maldito. Faz misturas de gêneros (tipo western com fantasia) como "After Blue (Paraíso Imundo)", que lhe deu o Prêmio da Crítica no Festival de Locarno (na Suíça) e o Prêmio Especial do Júri em Sitges (na Espanha).
Essas mesclas mucho locas asseguram prestígio a essa "entidade" da cultura audiovisual. Mandico se define como não binário, mas é indiferente quando chamado por vocábulos masculinos, ou por expressões como "senhor", sem cobrar o uso da linguagem neutra. Brinca que se vê como "atriz", uma vez que a performance é a sua prática de criação, condensada experimentos de artes visuais. Ele virou uma das vozes autorais de maior eco na cena audiovisual europeia depois que um de seus longas, "Os Garotos Selvagens" ("Les Garçons Sauvages"), encabeçou a lista dos melhores filmes de 2017 da "Cahiers du Cinéma". Nunca lançada comercialmente em circuito brasileiro, essa iguaria será projetada hoje no Rio de Janeiro, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM-RJ), às 18h, na seção Inéditos Contemporâneos. Mostras em Bruxelas, em Vilnius e na Sicília a cobriram de prêmios.
Xodó da "Cahiers" (uma bíblia para a cultura fílmica), a obra explicitamente queer de Mandico, carregada de erotismo em seu debate sobre o desejo, virou cult. Galgou o reconhecimento de que precisava há dois anos, quando seu longa mais recente, "Conann" (2023), foi convocado para a Quinzena de Cineastas do Festival de Cannes. Nele, muda o sexo do bárbaro celebrizado por Arnold Schwarzenegger.
"É da força das mulheres que a gente precisa para mudar uma realidade autoritária que tentou cessar o acesso à liberdade que todo ser vivente tem. Regras morais não podem limitar um processo criativo, tampouco imposições biológicas ou sociais", disse Mandico ao Correio da Manhã, numa entrevista em Locarno, ainda badalado por "Os Garotos Selvagens".
Essa imperdível atração do MAM se passa no início dos anos 1900, quando cinco adolescentes de famílias ricas são enviados em um cruzeiro repressivo após assassinarem seu professor. Liderados por um capitão violento, eles chegam a uma estranha ilha com vegetação exuberante e sobrenatural. Lá, uma mudança vai acontecer com essa patota. Detalhe: o elenco principal é todo de mulheres, encarnado arquétipos masculinos.
"Qualquer padrão imposto pode ser quebrado em prol da livre expressão", diz Mandico ao Correio, ressaltando a relevância do formato curta-metragem para a construção de seu legado.
Dois deles estão na plataforma MUBI: "Boro In The Box" (2011) e "Living Still Life" (2012). Ele lançou um novo, "Petrouchka", no ano passado.
Revelado nas telas em 1998, ao dirigir "Le Cavalier Bleu", Mandico dialoga com as cartilhas das narrativas fantásticas a partir da influência que carrega dos quadrinhos europeus dos anos 1960 e 70. Nascido em março de 1977, em Toulouse, ele cresceu lendo a HQ "Métal Hurlant" ("Heavy Metal" no Brasil), gibi que nos revelou Moebius, Richard Corben e muitos outros talentos do desenho, pautados pela lisergia.
"Em tempos de cultura do ódio, a fábula é um caminho alternativo, que nos permite respirar pelos pulmões da estranheza, e perceber a intolerância que nos venda", disse Mandico. "É essa a linha narrativa que eu sigo: desvelar interditos".