Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Ponte luso-brasileira para o cinema de autor

A portuguesa Teresa Tavares e o ítalo-americano Sebastiano Pigazzi protagonizam longa de realizador luso | Foto: Faya Netto/Divulgação

Batia uns 13 graus nos termômetros de Lisboa, sob um vento contínuo, quando "Última Noite" abriu seu set para uma vista do Correio da Manhã, compartilhando um clima de mistério digno de "Ascensor para o Cadafalso" (1958). A referência ao cult de Louis Malle (1932-1995) vem da elegância visual impressa num diálogo com as cartilhas do thriller e, sobretudo, da assinatura autoral de seu realizador, Tiago R. Santos.

Outrora crítico, consagrado no cinema português por seu histórico como roteirista (vide o sucesso "Call Girl", de 2007), o diretor de "Revolta" (2022) traz uma refinada cinefilia consigo ao construir uma história de acerto de contas que flagra a violência contra as mulheres. Malles é sempre uma alusão que se faz notar por quem mergulha em seus escritos ou em suas imagens.

"Este filme está cheio de referências cinematográficas, de 'Paris, Texas' a John Cassavetes, mas põe um espelho diante de Lisboa, para mostrar à cidade o que ela está a se tornar. Um reflexo retorcido expõe seu ridículo, a partir de uma Lisboa noturna, cosmopolita", explicou Tiago, que operou numa equação luso-brasileira de coprodução, envolvendo uma das mais respeitadas usinas de (boa) dramaturgia da Europa, a Fado Filmes, e a inteligência sul-americana da FM Produções, do carioca Fernando Muniz.

Preparando-se para lançar "Filhos do Mangue", que rendeu à cineasta Eliane Caffé o troféu Kikito de Melhor Direção em Gramado, em 2024, Muniz traz em seu currículo uma apoteose da diva espanhola Carmen Maura. Ela foi estrela de "Veneza" (2019), rodado por Miguel Falabella no Uruguai, que integra seu histórico de projetos como produtor. Participou ainda do único documentário nacional que conquistou o prêmio L'Oeil d'Or do Festival de Cannes: "Cinema Novo", de Eryk Rocha, lançado em 2016.

"Muito feliz por ter terminado as filmagens de meu primeiro longa em Portugal, em coprodução com a prestigiosa Fado Filmes de Lisboa", diz Muniz, hoje radicado em Setúbal, a 40 minutos da capital lusa, onde toca múltiplos projetos. "A FM está negociando conteúdos brasileiros para canais portugueses. Acabo de fechar 'Filhos Do Mangue' e estou mandando uma lista com 10 outros títulos para avaliação".

O trabalho de Muniz sela um casamento de talentos artísticos e cálculos financeiros precisos que refina a relevância estética (e geopolítica) das coproduções internacionais. No set visitado pelo Correio, um casarão, ele tinha o olhar atento para cada detalhe de uma trama que ambiciona os festivais do Velho Mundo com suas reflexões sobre identidade e pertencimento.

"Solidão é o espaço entre aquilo que somos e a forma como as pessoas nos enxergam", dizia Tiago". "De certa forma, há personagens solitárias aqui".

Segundo o cineasta, "Última Noite" fala de personagens que, na impossibilidade de voltarem à sua essência, buscam uma formam ideal para sem vistas da maneira como querem.

"Ou seja, falamos sobre performances", explicou Tiago, quando tinha cerca de 40 minutos de seu longa filmados. "Quando trabalho como argumentista, sou motivado por desafios de terceiros, na direção do que precisam. Como realizador, gosto do diálogo não só por aquilo que as pessoas estão a dizer, mas pelo que estão a esconder. As pessoas fogem das palavras em vez de as procurarem".

No argumento de "Última Noite", o jovem escritor americano Andrew (Sebastiano Pigazzi) está às vésperas de regressar a Nova York, quando é confrontado por Sara (Teresa Tavares), uma artista plástica portuguesa que o acusa de um terrível crime.

"A verdade é corrompida pela memória", explicou Teresa, definindo Sara como uma figura à beira de uma quebra, internamente, conectada com a tese de Tiago sobre a força do verbo na narrativa fílmica. "Dizer uma palavra é tornar um sentimento real. Na acusação de um crime, Sara se põe de forma visceral".

Destaque em filmes como "Cândido" (2024) e "A Terra Do Não Retorno" (2020), a atriz define "Última Noite" como uma Babel onde não há desencontros pela pluralidade de culturas no set e, sim, simbioses. "Existe um valor humano raro em cruzar talentos de cantos diferentes do planeta aqui, numa história em que a construção de identidade se dá a partir de um confronto com o outro".

Visto há pouco na série "The Offer", Pigazzi define Andrew como uma ilha.

"Todo artista é solitário, mas os escritores o são ainda mais. Tem algo duro nele, mas isso o torna humano", diz o ator, de origem italiana. "Filmando em Lisboa, eu percebo em Portugal algo mais caloroso do que vejo em Nova York. É a 'europeidade' desta nação, que vem do oceano, que está na brisa. Nesse ambiente, eu tento buscar os lugares onde Andrew não se abre para ser ajudado".

Na mistura que forma o elenco de "Última Noite" aparece o brasileiro Thiago Justino, que filmou "Comboio de Sal e Açúcar" (2016), em Moçambique, e "Bye Bye Amazônia" (2023), com Neville D'Almeida, na Ilha da Gigóia. Ele interpreta Wagner, vértice de exceção na geometria de mágoas entre Sara e Andrew.

"Como um homem negro, aos 65 anos, eu passo a ser um griot (um contador de histórias na tradição africana) que celebra a humanidade. É esse o valor de Wagner, que se vê longe de seu lar, em outro país", diz Justino, elogiado em festivais por sua atuação no ainda inédito "Malês", que escancara o crime do racismo. "Eu tenho uma carreira internacional. Filmo em Lisboa e já filmei em Moçambique. Estou no mundo. No Brasil, contudo, algo me incomoda. Na TV, no passado, você só via um negro por novela, e ele era sempre um empregado. Hoje você vê dez. Todos empregados. A televisão acha que isso é melhorar a nossa representatividade. Não é".

Ao trazer um ator do talento (e da inquietação) de Justino para "Última Noite", Tiago celebra a miscelânea de saberes de um intercâmbio entre nações.

"Não quero que este filme imponha a visão de um português. Trabalho sempre numa dinâmica do 'Ajudem-me!', a ouvir toda a equipe", diz o cineasta. "Eles me trazem uma competência que eu não tenho".

Ator de formação, com experiência como cantor de ópera na Itália, Muniz embarca agora na finalização de "Última Noite" ciente da importância de ter escolhido a "terrinha" como nova base de operações para sua arte.

"A Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual enxergaram finalmente o bom negócio que são as coproduções internacionais e isso reforçou a minha escolha e me deu os meios financeiros para empreender em Portugal", diz o produtor, que divide com a Fado o futuro de "Última Noite" num empenho de consagrar Tiago como uma grife de autoralidade. "Atencioso no set, ele é um brilhante roteirista. E o roteiro é o ponto de partida de todo bom projeto".