Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um homem, uma mulher, um filme

Visto por 4,2 milhões de pagantes na França, 'Um Homem, Uma Mulher' ganhou a Palma de Ouro e dois Oscars | Foto: Les Films/Divulgação

A cada ano, desde sua fundação, em 1939, o Festival de Cannes eterniza não só as tendências estéticas do audiovisual, endossadas com sua Palma de Ouro, mas também a cultura gráfica do cartazismo, com pôsteres que marcaram época. Muitos se reportam a filmes (tipo "Pierrot Le Fou", "Kagemusha", "Amor À Flor Da Pele"), outros celebram entidades (Fellini, Paul Newman). Este ano, pela primeira vez em sua história, o evento francês, que vai de 13 a 24 de maio conta com um poster duplo, a celebrar o feminino e o masculino, a partir de uma mesma sequência de abraço - e que sequência! -, de um sucesso europeu. Tal sucesso é um pilar do romantismo na França, que vendeu 4.269.209 ingressos só em seu país de origem, em sua estreia, em 1966: "Um Homem, Uma Mulher" ("Un Homme et une Femme").

O fenômeno de bilheteria de Claude Lelouch, coroado com um par de Oscars (Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Roteiro), serve de molde à imagem síntese (uma imagem em dobro, no caso) da maratona cinéfila cannoise de 2025. Essa escolha joga novos holofotes sobre o longa idealizado há 60 anos, e sobre a obra de seu realizador que hoje, aos 87 anos, tem um novo projeto em gestação.

"Sou da geração da película em 35mm, que curtiu toda a riqueza sensorial dos negativos, mas é preciso seguir adiante, perceber que o mundo anda e que um celular também oferece uma paleta de cores rica para quem é cineasta. Fiz filmes em iPhone e não tive problemas, pois o que conta é ter uma boa história. O hiato entre presente e passado me instiga. A percepção de que, com a avanço da idade, o fim me acena, torna esse hiato muitíssimo mais interessante", disse Lelouch ao Correio durente o Rendez-vous Avec Le Cinéma Français.

Em 2024, o cineasta lançou "Finalement", com Kad Merad, com a ideia de encerrar ali sua prolífica carreira, iniciada em 1957. A boa acolhida ao que deveria ser seu canto de cisne hoje inspira uma sequência, "Finalement, Ça Ne Finira Jamais", já em produção. Vale lembrar que o diretor conta com o xodó dos exibidores do Velho Mundo por seu histórico de êxitos, com destaque para a indicação ao Globo de Ouro que recebeu em 1996 por "Os Miseráveis", uma versão singular da prosa de Victor Hugo (1802-1885) com Jean-Paul Belmondo (1933-2021). Fora isso, em 2019, Cannes abriu suas telas para que ele exibisse por lá "Os Melhores Anos de Uma Vida", continuação tardia (e outonal) de "Um Homem, Uma Mulher".

Além de oscarizado, o original, que vai decorar as paredes do Palais des Festivals na Croisette em maio, ganhou a Palma dourada de 1966 e o Prêmio do Júri Ecumênico. Eram tempos de Nouvelle Vague, o movimento que renovou o cinema da França (e do planeta) nos anos 1960, com Jean-Luc Godard, François Truffaut, Agnès Varda e Eric Rohmer aplicando reflexão semiótica, teses políticas e ardor de cinefilia aos discursos fílmicos. Lelouch preferiu ir por um caminho oposto e festejar o benquerer de forma rasgada. Apoiou-se numa trilha sonora de Francis Lai, com menções a Pierre Barouh, Baden Powell e Vinicius de Moraes, que embalou gerações ao som da melodia "chabadabada". Em cena, seguimos o idílio entre dois viúvos que se esbarram por ação do acaso e se apaixonam: a roteirista Anne Gauthier e o piloto de corridas Jean-Louis Duroc, vividos por um par de titãs, Anouk Aimée (1932-2024) e Jean-Louis Trintignant (1930-2022).

Há onze anos, Cannes comemorou o cinquentenário desse clássico em sua seção retrospectiva e, na mesma ocasião, o festival Varilux, projetou a fita no Rio, em São Paulo e mais uma leva de cidades. Na época, Lelouch contou rodou o filme ao custo de 470 mil francos, uma ninharia para sua época.

"Vinha de dois fracassos, sem a menor perspectivas, até que peguei o carro e saí em disparada pela França, até chegar a uma praia, onde, no desespero, na angústia, adormeci. Acordei com um nascer do sol belíssimo, vendo uma mulher passeando na areia com seu cão. Ali veio a ideia de uma paixão idílica e nasceu o longa que mudou minha vida", disse Lelouch.

"Em 'Um Homem, Uma Mulher', em meados da década de 1960, quando Anouk Aimée envia um telegrama a Jean-Louis Trintignant, durante o Rally de Monte Carlo, brota-se uma sensação mágica de espera, de surpresa, algo impensável no cinema de hoje, quando as narrativas são elípticas por pressa e não por estilo. Não gosto de reclamar do esgotamento da arte cinematográfica, apesar de ele, por vezes, se fazer notar. Creio que as tecnologias digitais deram ao cinema uma sobrevida".