Desde a manhã do 21 de abril, o mundo chora a morte do argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, o que amplia o interesse da mídia por incursões cinematográfica a seu legado. É o caso de "2 Papas" (2015), de Fernando Meirelles" (na Netflix) e "Chiamatemi Francesco - Il Papa della gente" (2025), de Danielle Luchetti, com Rodrigo de la Serna. Até o alagoano Cacá Diegues (1940-2025) fez um filme sobre ele, "Rio de Fé", em 2013, em meio à visita do líder religioso ao Brasil, cercado de peregrinos.
Mas a narrativa fílmica mais balada acerca do pontífice que acaba de nos deixar, contudo, é um longa documental do artesão autoral alemão Wim Wenders, lançado no Festival de Cannes de 2018: "Papa Francisco - Um Homem de Palavra" (2018). Embora nunca lançada em circuito no Brasil, a fita acaba de entrar para aluguel ou compra no YouTube, e dispara na atenção de internautas.
Cada vez mais ativo nas artes visuais, como fotógrafo, Wenders renovou sua popularidade ao ser indicado ao Oscar por "Dias Perfeitos" (2023), hoje na MUBI. Ele foi um pilar para a ficção nos anos 1980, quando seu "Paris, Texas" (1984) conquistou a Palma de Ouro de Cannes e se consolidou como um sopro de renovação para as divagações existencialistas na dramaturgia ocidental.
Poucos realizadores refletiram - e ainda refletem - sobre a dimensão plástica da imagem, na tela grande, como ele, que, nas últimas duas décadas notabilizou-se mais na seara do documentário, com sucessos como "Buena Vista Social Club" (1999), "Pina" (2011) e "O Sal da Terra" (2014), codirigido por Juliano Salgado, tendo por base o trabalho do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado.
Já às voltas com um novo projeto, Wenders continua a mobilizar olhares, na latitude da streaminguesfera. Tanto é que o YouTube abriu espaço para "Papa Francisco - Um Homem de Palavra" em sua grade. A produção dribla todas as possíveis ciladas religiosas e faz uma reflexão pautada em um único credo: a fé na solidariedade.
Longe de ser uma propaganda cristã, o longa, com o selo da Universal Pictures, aposta na dialética, tirando o pontífice de qualquer zona de conforto, falando sobre casos de pedofilia entre padres, machismo, homoafetividade e a situação dos refugiados políticos.
"Eu venho de uma geração que foi salva pelo rock'n'roll e, de certa medida, em sua postura de amorosa transgressão, o Papa Francisco é um rockstar, que combate a intolerância ao nosso redor", disse Wenders na Croisette, antes de seu filme ser projetado.
Naquele momento, circulava pela Europa uma cópia remasterizada de seu "Asas do Desejo", que deu a ele o prêmio de melhor direção em Cannes, em 1987. "É uma muito tênue a fronteira sensível entre documentário e ficção. Na dramaturgia que temos hoje, o Real nos surpreende e nos atropela", disse o cineasta ao Correio da Manhã, em uma passagem pelo Festival de San Sebastián, na Espanha, quando começou a moldar o longa sobre o Sumo Pontífice.
"É rico quando a ficção se deixa atropelar pela realidade, amalgamando fato e fabulação. Sem se atentar ao real, tudo cai na fantasia, na fábula... E a realidade é o pilar de que eu preciso agora, diante do cinismo deste mundo que nos cerca e que desaprendeu a prestar atenção no próximo. Há documentários que vão na direção oposta. Alguns são muito ficcionais. Se você olhar com atenção para o meu 'Buena Vista Social Club', vai encontrar quase um musical fabular ali, no seu recorte para um mundo mágico da melodia. Mas tem gente de verdade ali".
Estruturado a partir de uma mistura de entrevistas e imagens de arquivo, "Papa Francisco: Um Homem de Palavra" foi definido por Wenders como um exercício de geopolítica. "É um absurdo que, com tanta riqueza que temos no mundo, ainda haja crianças com fome", critica o Papa no filme, que usa recursos de ficção com referências ao expressionismo alemão para recriar a história de São Francisco de Assis, um dos pilares do Bem entre os católicos.
"O amor sempre teve um lugar filosófico na arte, por sua dimensão metafísica, mas ele agora ganha uma nova transcendência revolucionária nestes tempos de terror, de crise e de falência moral", disse Wenders. "O cinema fez história com filmes de amor, mas eles se tornaram artigo raro em meio à fauna de filmes de digestão rápida de hoje. O amor não é fácil de ser digerido, pois ele exige doação, cumplicidade. Eu escolhi falar dele porque a moeda de troca do Presente é o ódio. Eu quero sair desse lugar...", diz Wenders. "A medida do ódio é a desigualdade social".