Responsável por um dos ciclos mais criativos do cinema brasileiro da primeira metade do século XX, graças a filmes mudos como "Aitaré da Praia" (1925) e "A Filha do Advogado" (1926), o cinema pernambuco reinventou sua importância na cena audiovisual depois de "Baile Perfumado", de 1996.
Era um tempo em que Chico Science (1966-1997), vindo de Olinda, oferecia uma nova sonoridade para a música brasileira, pelos acordes do movimento manguebeat. Seu som está naquele longa-metragem inesquecível, nas faixas "Salustiano Song", "Sangue de Bairro" e "Angicos". Ele surgiu num momento de euforia para o Nordeste, consagrado no Cinema Novo (1962-1969) sobretudo pela Bahia de Glauber Rocha (1939-1981), que abria novos espaços, no fim do milênio, à força do talento de Lírio Ferreira.
De lá vieram Kátia Mesel, Claudio Assis, Camilo Cavalcante, Gabriel Mascaro (premiado com o Grande Prêmio do Júri do último Festival de Berlim por "O Último Azul") e Kleber Mendonça Filho (que vai concorrer em Cannes, de 13 a 24 de maio, com "O Agente Secreto").
Lírio abriu o bonde. O longa que o consagrou, o tal "Baile..." - no qual um fotógrafo libanês busca Lampião - foi dirigido em duo com Paulo Caldas (que filmaria na sequência nos seminais "O Rap do Pequeno Príncipe Contra As Almas Sebosas" e "Deserto Feliz"). Ao lado de Caldas, ele trazia na conta os curtas "O Crime da Imagem" (1992) e "That's a Lero-Lero" (rodado em dupla com Amin Stepple em 1994) e seguiu a edificar uma forma particular de decifrar estratégias de aliança em "Árido Movie" (lançado no Festival de Veneza de 2005) e "Sangue Azul", exibido na Berlinale de 2015. Esse "objeto" recorrente dele - as convergências, feitas por afeto, tesão ou interesse$ - volta à tona, num friso autoral, no sufocante "Serra das Almas", hoje em cartaz. É uma aula de direção.
André Sampaio assina sua montagem apostando na taquicardia, numa mistura de thriller com western (moderno) que evoca os Irmãos Coen de "Onde Os Fracos Não Têm Vez" (Oscar de Melhor Filme de 2008). É uma edição que embaralha (sem confundir) Presente e Passado a fim de justificar um porvir de feridas e pólvora. Lá pelas tantas, ouve-se em cena a frase: "Aonde a gente vai, a gente carrega fantasmas atrás da gente". Há, indubitavelmente, um outro fantasma cinéfilo, fora o cult dos Coen: a filmografia de Sam Peckinpah (1925 - 1984), realizador de "Os Implacáveis" (1972) e "A Cruz de Ferro" (1977).
Embora sem usar a câmara lenta que virou marca desse mestre do bangue-bangue e de filmes de ação brutos, a produção pernambucana é "peckinpahniana" na essência. Assemelha-se ao diretor de "Comboio" (1978) em seu recorte de um mundo desencantado, destituído de redenção, pautado por um duplo ethos: o da mesquinharia e o da derrota. Não existe vitória perpétua nos longas de Peckinpah, só acertos provisórios, o que o novo exercício fílmico de Lírio reitera, com brasilidade.
No seu poético "Pistoleiros do Entardecer" (1962), o artesão americano da aspereza põe um de seus cowboys a dizer "Eu so quero entrar em minha casa com dignidade", de modo a expressar que o mínimo de dignidade de que um caubói precisa é sobreviver. Nenhum Cisco Kid filmado por ele tinha a dimensão homérica de um John Wayne ou o brio épico de um Gary Cooper. No matar ou morrer de um Oeste empoeirado, seus personagens de colt na cintura parecem cães danados, como "Meu Ódio Será Sua Herança" (1969) tão bem demarcou. Uma dinâmica similar se passa com diferentes vértices da trama filmada por Lírio, a partir de um argumento de Maria Clara Escobar, Paulo Fontenelle e Audemir Leuzinger. Seu Pernambuco atual não tem a celebração da Nação Zumbi dos anos 1990. Ele é coalhado de cowboys em busca do trocado que lhes encha a algibeira.
Existe uma ciranda de quase protagonistas em cena. Cada um tem um momento de expressar a sua vontade de potência ou sua vulnerabilidade. A plateia pode embarcar no eixo que quiser nos diferentes vértices do poliedro cinemático estruturado por Lírio, coroado na Mostra de São Paulo de 2024 com o Prêmio Netflix. O ângulo que mais salta aos olhos é um desgraçado por excelência chamado Gislano, um ladrão de tolerância mínima pelo próximo, que expõe todo o vigor que Ravel Andrade tem atuando. Ravel é um doberman faminto em cena: rosna e morde.
Na "Serra das Almas" de Lírio, ressecada na fotografia dionisíaca de Pedro von Krüger, encontra-se um certo senso de "dignidade" numa repórter idealista que persegue um escândalo: Samanta (Julia Stockler, em inspirado desempenho). Parece haver gentileza numa jovem cantora cansada de desilusões: Vera (Mari Oliveira, em firme interpretação). Fareja-se ainda retidão num motoboy de passado nebuloso: Gustavo (Vertin Moura, o achado do elenco, numa atuação meticulosa), que torce toda a nossa compreensão de certo e de errado. Só não restam dúvidas de que o político escroque esculpido por Bruno Garcia no cinzel da excelência sintetiza o degredo moral do Brasil.
Nesse "Traga-me a Cabeça de Alfredo Garcia" (1974) de Lírio, essa gente toda se tromba, direta ou indiretamente a partir de um roubo de joias. O crime detona, na tela grande, um faroeste esturricado, estruturado como comédia de erros, na qual seu diretor esbanja destreza na condução de um elenco de múltiplas proficiências. O olhar triste de Samanta (Stockler), ao fitar o Nordeste com mirada de "Anjo da História", de "Angelus Novus" (quadro de Paul Klee famoso pelo rosto perplexo de um querubim), sintetiza a sensação de desterro de um país carente de amparo. Um país que Lírio filma com poesia, ainda que nas vias do alarme.