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Na tangente da dança moderna

Não por acaso, todos os movimentos de 'Sagração' terminam com um corpo se debatendo numa rede | Foto: Flavio Colker/Divulgação

Por Gustavo Zeitel (Folhapress)

Rastejando, 15 bailarinos entram em cena, sob uma luz vermelha pau-brasil, e estabelecem os primeiros movimentos de "Sagração", o novo espetáculo da Companhia Deborah Colker, que inicia turnê nacional a partir desta semana em São Paulo. O trabalho de chão ali desenvolvido, adverte a coreógrafa, em nada se assemelha à dança moderna, cujos preceitos resgataram os bailarinos do ar e os devolveram ao solo, numa busca expressionista. Há três décadas à frente do grupo, Colker tem uma atitude pragmática diante da tradição europeia.

Seu trabalho não se encerra nos códigos de outrora, embora a representação do Brasil contemporâneo só se realize num exercício de alteridade. A artista criou uma nova encenação para "A Sagração da Primavera", de Igor Stravinsky, uma deflagração do presente, em que a humanidade, a despeito do progresso capitalista, está posta em xeque pela crise climática. Por isso, Colker investiga o que é ser primitivo, quando a cultura ocidental se desfaz em ruínas.

"Stravinsky fez uma bagunça grande no mundo, e eu senti que precisava fazer também." Não é absurda a ideia de alcançar os dilemas do Brasil, numa contraposição à Rússia antiga. O próprio modernismo instituiu um ambiente de trocas musicais entre os dois países. Viajando pela Europa, Heitor Villa-Lobos se encantou pelo primitivismo russo de Igor Stravinsky, que foi uma influência para algumas de suas composições, como os "Choros".

Musicalmente, "Sagração" retoma as correspondências entre os dois países, agora sem a mediação de Villa-Lobos, o homem branco. O diretor musical Alexandre Elias insere o som da floresta e de instrumentos musicais indígenas, como flautas, tambores e chocalhos, sobre a gravação da obra original.

O balé original seguia o esquema da partitura, dividida em duas partes - - "Adoração da Terra" e "O Sacrifício" -, contando a história de uma virgem que dança até a sua morte, numa oferenda ao deus Sol. Colker rompe a proposta original e não encena o sacrifício. "A própria evolução civilizatória é um sacrifício", ela afirma.

Nesse sentido, Colker afasta narrativas, mas indica um caminho dramatúrgico. Seu espetáculo mostra a evolução do homem. Na primeira parte, ela dilui as nacionalidades, nesse jogo entre Rússia pagã e o passado brasileiro. O que importa é o bicho homem. Vestindo collants, eles se apresentam como bactérias, quase lesmas, articulando braços e pernas contra o ar.

Pouco a pouco, os bailarinos se tornam bípedes e empunham, cada um deles, varas de bambu, medindo quatro metros de altura. O material, afirma a coreógrafa, enverga, mas não quebra, como o Brasil. Os bailarinos representam, então, os nativos.

Toda a sequência do espetáculo se desenvolve sob uma perspectiva circular, bem ao modo dos rituais indígenas. Em um dado momento, um dos artistas fica dependurado em quatro varas, com a cabeça rente ao palco, enquanto cinco homens rodam o seu corpo, que está ao centro. O homem parece estar prestes a ser devorado, numa referência à antropofagia, chave do processo criativo pragmático.

"Temos em comum o hábito dos rituais e a consciência da força da natureza", diz ela, descendente de bielorrussos. Colker deglute a herança do compositor, que aliou erudição à riqueza folclórica de seu país, para questionar o conceito de primitivismo.

O trabalho da artista se integra ao contexto em que o Ocidente se abre à sabedoria ancestral. O novo espetáculo da companhia flerta com a teoria do perspectivismo ameríndio, de Eduardo Viveiros de Castro. Diante do mundo contemporâneo, o antropólogo defende a existência do pensamento indígena, e Colker, ao seu turno, se dispõe a aprender a viver em comunhão com humanos e não humanos. Entre secas históricas e enchentes destruidoras, "Sagração" é um espetáculo urgente, em um mundo de urgências.

No que se restringe "A Sagração", a crítica ao conceito de primitivismo se alia ao questionamento do ideal de progresso, forjado pelo tecnocapitalismo. Tal indagação não se faz presente apenas na derrubada violenta dos bambus, mas nessa forma circular adotada pelos bailarinos, que se reitera na coreografia, numa sequência de rituais.

Não por acaso, todos os movimentos de "Sagração" terminam com um corpo se debatendo numa rede. O símbolo do modernismo, mediador das musicalidades à primeira vista distantes, mostra que a nossa realidade é também disfuncional. O brasileiro, a exemplo toda a humanidade, se contorce, enredado, sem saber se um dia haverá salvação.

"A rede traz a ideia de sonhar. Só o sonho pode modificar a realidade", diz Colker.