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FotoCrônica: Limpemos as gavetas (1ª parte)

FotoCrônica 14/6/2024 | Foto: Carlos Monteiro

Gavetas são, muitas vezes, espelhos d'alma. Um entulhado de papéis amarelados pelo tempo, objetos inúteis e memórias dispensadas no fundo de um armário qualquer, na cômoda do quarto, na escrivaninha do escritório ou na mesa de cabeceira da alcova. Nelas vão sendo depositadas as lembranças do que fomos em algum momento. Hora por outra arrancamos de nosso peito tão estranhas reminiscências como numa anamnese, rasgamos o espartilho que nos amordaça, cinta do passado e travazamos tudo que nos aperta, nos sufoca e nos traz lembranças de um passado desnecessário.

Limpar uma gaveta é como tornar nossa história latente. Encontrar uma conta paga há mais de um par de anos, um extrato do cartão de crédito ora inexistente que apresenta valores defasados, carcomidos pelo tempo e pela inflação. Viagens realizadas, almoços em espaços românticos com vieses apaixonados, asas partidas, casas esquecidas. Lembrar daquele beijo na sessão do Roxy ou do Rian e do cantinho gostoso da Cirandinha para o lanche com waffles, mel e manteiga, chá com torradas servidos por impecáveis garçons, trajando seus paletós beges trespassados.

Anotações em velhas agendas, diários oculares que hoje embrulham o peixe da vida atrás. Anotações inúteis em pequenos pedaços de papel que de nada servem porque sequer sabemos seu significado. Tiveram serventia um dia. Objetos sem serventia, empoeirados pelo tempo da razão ou do obsoletismo, lá estão, jazem inúteis, quase peças de antiquários, quiçá museus.

Aparelhos quebrados e prometidos ao conserto que nunca veio e para onde nunca foram. Quinquilharias como o velho radinho de pilhas que, muitas vezes, foi companhia solitária naquela derrota do América para o Bangu em pleno Maracanã. Objetos que, pelo diminuto tamanho, não poderão preencher o vazio da 'Kombi do ferro-velho' que atormenta diariamente nossos ouvidos com o apregoo da limpeza de sua garagem ou quintal. Devia haver uma 'Kombi da gaveta cheia'. São tantas coisinhas miúdas: clips amassados, grampos sem pressão, elásticos que tempos atrás alinhavam madeixas e perderam a liga, canetas sem tinta, lápis sem crayon. Tudo lá, no fundo falso da ilusão perdida.

Um cartão de crédito vencido que tantas contas pagou, dinheiro de plástico impecavelmente limitado a míseros trocados recusados. Lá está ele, da soberania da carteira ao esquecimento tardio da não mais-valia. Antagônico valor e desvalor, supérfluo cidadão presente que tantos presentes trouxe e a canastrinha de surpresas, no fim do mês, com a conta apresentada, Caixa de Pandora assustadora.

Continua (...)