Por: Carlos Monteiro | Textos e fotos

FotoCrônica: Limpemos as gavetas - 2ª parte

FotoCrônica 21/6/2024 | Foto: Carlos Monteiro

(Continuação)

Na gaveta a ser limpa também se encontram cartas de amor mal'escritas em bem traçadas linhas de paixão, qui bene amat, bene castigat, são lidas e relidas; nem eram lembradas, ainda trazem o bolor em letras garrafais, sintonia de amor não correspondido, sequer foram postadas, sequer foram levadas adiante, sequer foram completadas, era bem capaz não ter valido a pena... se nem eram lembradas... Epístolas incompreendidas, cartas não trocadas. Escondem poemas dedilhados, musas líricas, rimas pobres, lusos pobres, rimar é riqueza de amar, sutil arte da narrativa do coração. Cornucópia perene em moto-contínuo onde, ao invés de frutas, saem palavras, pura docilidade representativa da deusa do Olimpo dos escribas, velhos papiros naufragados.

O ranger dos cacifos, seja pela lubrificação inexistente, seja pelo ranço do empeno cujo tempo fez senão, madeiras nobres já tão surradas do vai e vem oblíquo, mas inconstante, guardam o tom das notas musicais ajuntadas nas velhas fitas K-7, trilhas sonoras que embalaram viagens no tempo, tocadas no TDK do Puma conversível prateado. Jornada no século de apenas alguns minutos. Uma espécie de hipnose, transe em reminiscência. Carole King e James Taylor, Stevie Wonder, Jose Feliciano, dois 'pra' lá, dois 'pra' cá em Manzanero, um Sinatra e Aznavour, "Et si tu n'existais pas/Dis-moi pourquoi j'existerais...//...Hier encore j'avais vingt ans/Je caressais le temps et jouais de la vie..." e como a vida acaricia, e como ela brinca.

Estão mais ao fundo, antigas imagens, fotografias desbotadas ainda em preto e branco, bordas debruadas, detalhes 'picuetados'. A velha foto do álbum de família, desgastado pelas folheadas, charneiras descoladas, amarelecido papel manteiga; quantas lembranças bem-vividas, quantos sonhos projetados nos slides esmaecidos ao longo dos anos, alegorias metafóricas, máquina do tempo em movimento nos rolos de Super-8 e nas fitas VHS.

Mais ao fundo, sob o assoalho das memórias engavetadas, a bela máscara negra usada em um certo Carnaval em Veneza, che bella città! O pequeno saco de tule recheado dos confetes que deixaram de salpicar aquela noite e um rolo de serpentina, apenas um, dos tantos que foram atirados ao léu, apenas um conta aquela história de amor, aquele fusco, aquela masca negra.

A gaveta está vazia, a vida continua cheia de vida!